Direito Civil

Intolerância Pragmática

Ou, quando a ausência de argumentação legislativa, impõe uma argumentação jurídica

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por meio da ADI-4815, acerca do direito de um autor publicar sua obra de natureza biográfica sem prévia autorização do biografado, concluindo pela inconstitucionalidade dos artigos 20 e 21, ambos do Código Civil, encerrando, assim, uma celeuma instalada quando do inconformismo de personalidades sociais em ver suas vidas expostas por meio da publicação de obra literária.

Muito embora a decisão tenha levado em conta os diversos aspectos do princípio da liberdade, insculpido em nossa constituição, a decisão proferida em sede de ADI, limitada pelo pedido inicial, não se restringiu a uma análise meramente perfunctória sobre o tema, mas sim, um juízo crítico abalizado acerca da importância crucial da preservação da liberdade sob todos os aspectos, e, principalmente, sob uma visão argumentativa.

A afirmação do filósofo Carlos Bernardo González Pecotche, criador da Logosofia, resume de forma esplêndida o que foi analisado na ADI ora em comento:

Não poderá haver paz e concórdia enquanto não se reafirme definitivamente no espírito dos homens, sejam do país ou da raça que forem, o princípio fundamental da liberdade individual, que torna possível a manutenção da dignidade humana e permite o livre desenvolvimento da inteligência para os altos fins do progresso e da evolução dos povos.1

Nesse diapasão, enaltecem os comentários elaborados pelo Ministro Barroso durante sua interpretação do problema à luz do Direito Constitucional, afirmando que “a liberdade de expressão deve ser tratada como uma liberdade preferencial”2, e fornecendo três razões para sustentar essa afirmação.

A primeira delas, de caráter histórico, afirma que a censura nasceu com o país, uma vez que a glosa de textos foi originalmente concebida quando da supressão de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, por terem sido considerados indecorosos pelos religiosos jesuítas e, desde então, tolher a liberdade de expressão tornou-se uma prática inadequada ao regime democrático, como também inescrupulosa nas mãos daqueles que almejam conservar-se no poder a partir do controle da informação.

Diz o ministro, neste sentido, que “apreendiam-se jornais e revistas por motivos políticos ou de moralidade e boicotava-se a publicidade dos jornais independentes, para asfixiá-los economicamente, situação que rotineiramente se repete na América Latina”.3

A segunda razão, diz respeito ao exercício da cidadania plena que somente pode ser exercida pelo indivíduo na exata medida em que este tem acesso à informação sobre os fatos sociais, políticos e econômicos relevantes, tanto para o convívio social, como também para que possa este cidadão manifestar-se livremente sempre que um determinado assunto for posto à discussão. Prossegue, então, o Ministro, dizendo que “sem liberdade de expressão e da informação, não há cidadania plena, não há autonomia privada, nem autonomia pública”.

O cidadão precisa sentir-se livre não apenas para manifestar-se como também para tomar ciência de outras opiniões e manifestações que, de alguma forma, interfiram em sua vida social, ou individual. Aliás, este é o cerne da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu 108° período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro do ano de 2.000, da qual destacamos seus dois primeiros artigos:

1. A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas. É, ademais, um requisito indispensável para a própria existência de uma sociedade democrática.

2. Toda pessoa tem o direito de buscar, receber e divulgar informação e opiniões livremente, nos termos estipulados no Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Todas as pessoas devem contar com igualdade de oportunidades para receber, buscar e divulgar informação por qualquer meio de comunicação, sem discriminação por nenhum motivo, inclusive os de raça, cor, religião, sexo, idioma, opiniões políticas ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

“Art. 13. (…)

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.”4

Já a terceira razão, contém dois componentes, progresso e aprendizado sociais, que determinam a importância para o cidadão de, tendo acesso à informação, possa ele próprio desenvolver senso crítico e, ao mesmo tempo, analítico para uma busca constante de aprimoramento das relações humanas e sociais com vistas a um estado de bem-estar acessível a todos os seus semelhantes sem qualquer forma de discriminação.

E neste sentido, afirma o Ministro que “a liberdade de expressão é indispensável para o conhecimento da história, para o progresso social e para o aprendizado das novas gerações”.

Importante ainda, o destaque dado pela Ministra Cármen Lúcia em seu voto quando comenta:

“ … Pela biografia não se escreve apenas a vida de uma pessoa, mas o relato de um povo, os caminhos de uma sociedade. Se o pensar, investigar, produzir e divulgar a história de um ou de várias pessoas é livre, como se poderia fazer conformar-se à Constituição o que lhe atinge a essência, qual seja, o direito de liberdade de pensar e divulgar o pensado, máxime em se cuidando de produção intelectual decorrente de investigação sobre vida que se impõe como referência a uma sociedade?”5

A dicção dada pela Ministra segue no sentido de que a privação da liberdade do biógrafo em relação ao biografado, atinge diretamente os caminhos pelos quais aquela sociedade poderá seguir rumo à sua própria evolução e aprimoramento, quando, de um lado o Texto Magno adota como premissa a liberdade em todo o seu espectro, e de outro, cinge-se de enforcamento esse mesmo princípio em detrimento de uma censura prévia de fatos e atos historicamente relevantes e cuja ocorrência e publicidade podem servir para que o cidadão e também a sociedade vejam suas opções sobre uma abordagem o mais ampla possível, possibilitando o exercício digno de seu livre-arbítrio.

Ainda seguindo tal análise, a Ministra coloca em evidência a questão da censura de expressão, advinda com o fenômeno do “politicamente correto”; diz ela:

“A cultura do politicamente correto, expressão adotada desde a década de 80 do séc. XX, significando políticas tendentes a tornar a linguagem neutra para se evitar ofensa a pessoas ou grupos sociais discriminados historicamente, também vem sendo levada ao paroxismo, passando a se constituir em forma de censura da expressão. Adotam-se formas de censura implícita e particular, exercida de forma a tolher ou a esvaziar o direito à liberdade de expressão”.6

Impossível deixar-se de levar em conta que, as ilações estabelecidas sob a aura do “politicamente correto”, servem também para a adoção de uma censura implícita que acaba por cercear o direito ao exercício da liberdade de expressão. E arremata a Ministra com este significativo excerto:

“O sistema constitucional brasileiro traz, pois, em norma taxativa, a proibição de qualquer censura, valendo a vedação ao Estado e também a particulares. Tem-se, assim, assentada a horizontalidade da principiologia constitucional, aplicável a entes estatais ou a particulares. Quer-se dizer: os princípios constitucionais relativos a direitos fundamentais não obrigam apenas os entes e órgãos estatais. São de acatamento impositivo e insuperável de todos os cidadãos em relação aos demais. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceada pelo Estado nem pelo vizinho, salvo nos limites impostos pela legislação legítima para garantir a igual liberdade do outro, não a ablação deste direito para superposição do direito de um sobre o outro”. 7

(ANOTAÇÕES POSTERIORES: O Supremo Tribunal Federal declarou “inexigível o consentimento prévio, julgando a ADI procedente, mas sem redução de texto. Vale dizer, o Código Civil segue inalterado, mas a leitura censória dos artigos 20 e 21 fica desautorizada. “O erro não estava nos artigos, mas na sua interpretação discricionária que feria o exercício pleno dos direitos constitucionais”. Caberão medidas judiciais apenas após a publicação do livro. Direito da expressão versus direito à privacidade. Define ainda o Ministro Barroso: “A liberdade de expressão não é garantia de verdade ou de justiça. Ela é uma garantia da democracia. Defender a liberdade de expressão pode significar ter de conviver com a injustiça e até mesmo com a inverdade”, paginas 72/74)

 1     Extraído de  http://www.logosofia.org.br/artigos/o-principio-da-liberdade-individual/237.aspx, acessado em 21.06.2015.

2     O excertos a seguir foram extraídos da revista VEJA, edição nº. 2.430 – ano 48 – nº. 24 de 17.06.2015, pag. 11

 3     Ibdem ao anterior

 4     In  http://www.oas.org/pt/

 5     Extraído de  http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4815relatora.pdf, acessado em 21.06.15

 6     Ibdem

 7     Ibdem

Como citar e referenciar este artigo:
TROVÃO, Simone Akemi Kussaba. Intolerância Pragmática. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/intolerancia-pragmatica/ Acesso em: 25 abr. 2024