Direito Civil

A responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional no Brasil

THE CIVIL LIABILITY OF THE STATE FOR THE EXERCISE OF THE JURISDICTIONAL FUNCTION IN BRAZIL

Mayara Rayanne Oliveira de Almeida[1]

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Da Responsabilidade Civil; 3 Da responsabilidade civil do Estado: evolução histórica; 4 Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional; 5 Atividades jurisdicionais cabíveis de indenização; 6 Conclusão; 7 Bibliografia consultada.

RESUMO

O presente artigo trata da responsabilidade extracontratual do Estado, restrita aos atos provenientes da função judiciária, sobretudo aos atos jurisdicionais, em decorrência do princípio da responsabilidade civil do Estado, existente no artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal. O tema será abordado em linhas gerais, destacando a sua evolução histórica, suas teorias, como também a sua atual situação no direito vigente.

PALAVRAS CHAVE: Estado; Função jurisdicional; Responsabilidade civil; Direito administrativo.

ABSTRACT

This article deals with the non-contractual liability of the State, restricted to acts deriving from the judicial function, especially to judicial acts, as a result of the principle of civil liability of the State, existing in Article 37, paragraph 6, of the Federal Constitution. The theme will be approached in general lines, highlighting its historical evolution, its theories, as well as its current situation in the current law.

KEYWORDS: State; Jurisdictional function; Civil responsability; Administrative law.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por finalidade realizar um estudo enfatizando a responsabilidade civil do Estado-juiz. Trata-se de um tema polêmico e causador de muita controvérsia na doutrina e na jurisprudência, em razão de sua complexidade, bem como devido ao aumento da quantidade de demandas pela prestação da tutela jurisdicional.

O Estado, ente dotado de soberania, descentralizou o seu poder entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, visando um melhor desempenho de suas funções e, sobretudo, o bem comum. No entanto, as atividades estatais podem vir a causar prejuízos aos particulares. Sendo assim, a Constituição Federal de 1988, artigo 37, § 6, consagrou o instituto da responsabilidade objetiva do Estado, baseada na teoria do risco administrativo, no qual o Poder Público assume a possibilidade de dano, que porventura suas atividades venham a causar ao indivíduo. Logo, o direito passa a vislumbrar o direito à reparação nessas circunstâncias.

Ocorre que na jurisprudência e na doutrina brasileira é pacífico o entendimento que o Estado deve indenizar os atos administrativos danosos, diferentemente do que acontece quando se fundamenta a indenização nos atos jurisdicionais danosos, em que há uma corrente defensora da irresponsabilidade estatal decorrente de tais atos.

A responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais constitui, de fato, um importante mecanismo de defesa do indivíduo em face do Poder Público. O cidadão tem, assim, uma garantia de ressarcimento do prejuízo injustamente suportado por ele, mediante a responsabilização do Estado pelos danos resultantes da atividade judiciária.

Através da análise histórica do tema em questão, nota-se a tendência do direito atual em ampliar cada vez mais o campo da responsabilidade do Poder Público, mesmo que a responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional ainda seja um ponto de controvérsia. 

2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A Responsabilidade Civil observa-se a partir do fato em que ninguém pode lesar direito ou interesse de outrem. Consiste na obrigação de reparar economicamente os danos, no âmbito patrimonial ou moral, causados a terceiros, e, sendo o restabelecimento impossível, deverá haver a compensação de quem sofreu o dano. Segundo o artigo 927 do Código Civil brasileiro:

Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” e, seguindo em seu parágrafo único, “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos específicos em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Maria Helena Diniz (2015, p 247) define a responsabilidade civil da seguinte maneira:

A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).

No mesmo sentido, leciona o doutrinador Elpídio Donizette (2012, p. 391) acerca da responsabilidade civil:

O Direito Brasileiro protege as pessoas que sofrem dano, impondo ao autor do fato que deu caua ao prejuízo responsabilidade civil, a qual faz surgir o dever de reparação, tamném chamado dever de indenizar. O dano pode advir do descumprimento de um contrato, caso em que haverá responsabilidade civil contratual – mais modernamente, e mais tecnicamente, denominada responsabilidade negocial (…). Por outro lado, pode ser que o dano nada tenha a ver com um contrato, caso em que haverá responsabilidade civil extracontratual. Por ser sua fonte mais antiga a Lex Aquilia, do final do século III a.C., a responsabilidade extracontratual ficou também conhecida como responsabilidade aquiliana.

De maneira geral, a responsabilidade civil assim como a obrigação de reparar o dano surge da conduta ilícita do agente que o causou. O ato danoso gera a obrigação de compensação da vítima, mas nem todo dever de indenização é derivado de ato ilícito. Quando se trata de responsabilidade civil, a conduta do agente é a causadora do dano, emergindo daí a obrigação de reparar o dano. Todavia, para que se caracterize o dever de indenizar proveniente da responsabilidade civil, deve-se haver a conduta do agente e nexo de causalidade entre esta e o dano sofrido pela vítima.

3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A responsabilidade do Estado é tema que tem evoluído consubstancialmente nos últimos anos. Inicialmente, predominou a teoria da irresponsabilidade estatal, passou pela fase da responsabilidade subjetiva (responsabilidade com culpa) e, hodiernamente, atinge o estágio da responsabilidade objetiva (responsabilidade sem culpa). Enquanto isso, a ideia de responsabilidade estatal por ato jurisdicional não teve muito avanço na lei e na aplicação dos Tribunais, apesar de forte apoio da doutrina.

3.1 TEORIA DA IRRESPONSABILIDADE ESTATAL

Adotada pelas monarquias absolutistas, propugnava-se que o Estado não poderia se nivelar ao cidadão, considerado súdito na época, a ponto de se exigir que respondesse por seus atos. Partia-se da ideia segundo a qual o Estado dispõe de autoridade suprema e que “o rei não pode errar” (The King can do no wrong)

Para esta teoria, o Estado e o monarca não erram; o Estado age no interesse de todos e não pode ser responsabilizado por esses atos. A sua soberania impede que seja reconhecida a sua responsabilidade perante um indivíduo.

Durante sua vigência, em hipótese alguma, o Estado estava obrigado a recompor os danos causados a terceiros. Entretanto, aquele que sofreu o dano tinha direito de postular judicialmente contra o funcionário responsável pelo ato ilegal, visto que, quando praticava qualquer ato ilícito, estava agindo em seu próprio nome, ademais, tinha que se provar a culpa pessoal do agente.

Com o advento do Estado de Direito, marcado pelo limite a atuação do ente estatal, a ideia de um Estado irresponsável tornou-se inviável. Os últimos a abandonarem esta teoria foram os Estados Unidos e a Inglaterra.

3.2. TEORIA DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA

No século XIX, a ideia segundo a qual o rei é infalível e não pode errar foi superada. Para esta teoria, haveria a responsabilização estatal na hipótese de ação culposa do agente.

Em um primeiro momento, passou-se a classificar os atos estatais em: atos de império e atos de gestão, visando abrandar a teoria da irresponsabilidade. Os primeiros correspondiam a atos revestidos de privilégios e prerrogativas, representando o poder soberano do Estado. Os segundos consistiam nos atos praticados pela Administração, regidos pelo direito comum.

Nesse diapasão, tornou-se possível responsabilizar o agente que praticasse ato de gestão. O grande desafio desta teoria era estabelecer quando se tratava de ato de gestão ou de ato de império.

Outrossim, em um segundo momento, surgiram as teorias publicistas, conforme leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 590):

(…) começaram a surgir as teorias publicistas da responsabilidade do Estado: teoria da culpa do serviço ou da culpa administrativa e teoria do risco, desdobrada, por alguns autores, em teoria do risco administrativo e teoria do risco integral. A teoria da culpa do serviço (…) procura desvincular a responsabilidade do Estado da ideia de culpa do funcionário. Passou a falar em culpa do serviço público.

A teoria da culpa administrativa ocorre quando o serviço não funciona ou funciona de forma insuficiente. Nesse caso, o Estado responderá subjetivamente, mas com fundamento na culpa do serviço e não na culpa do funcionário, conforme será detalhado adiante.

3.3. TEORIA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA

Surgiu na França em 1873, em sede jurisprudencial, em decorrência do famoso caso Blanco em que uma menina, Agnes Blanco, fora atropelada por um trem da Companhia Nacional de Manufatura do Fumo ao atravessar uma rua da cidade de Bordeaux onde morava. Com o ajuizamento de ação de indenização por parte do pai, houve suscitação de conflito entre a justiça comum e o contencioso administrativo. O Tribunal de Conflitos entendeu que a matéria deveria ser apreciada pelo contencioso administrativo e não pela justiça comum, eis que se discutia a responsabilidade do Estado em decorrência de funcionamento de serviço público e que regras específicas de direito público deveriam nortear o deslinde da questão.

Esta teoria se divide tem três subteorias: Teoria da culpa do serviço, Teoria do risco administrativo e Teoria do risco integral.

3.3.1 TEORIA DA CULPA DO SERVIÇO

Essa teoria foi desenvolvida na França e era denominada “faute du service” (falta de serviço). Para ela, não há de se falar em culpa individual do funcionário público, mas a culpa do Estado em virtude do serviço público não ter funcionado ou ter funcionado mal e ocasionado dano a terceiro.

Cavallieri Filho destaca que mesmo sendo dispensável a prova de que o funcionário tivesse agido com culpa para o evento danoso, bastando à constatação de um mau gerenciador geral, não se estava diante de responsabilidade objetiva do Estado, era apenas um caminho transitório.

3.3.2 TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO

É a teoria da responsabilidade civil objetiva, segundo a qual o Estado responde, independentemente de comprovação de sua culpa ou que o serviço tenha funcionado bem ou mal, regular ou irregular.

Haverá, porém, possibilidade de exclusão de responsabilidade estatal se ficar comprovada a culpa exclusiva da vítima, de terceiro ou em virtude de força maior.

3.3.3 TEORIA DO RISCO INTEGRAL

Na teoria do risco integral, o Estado responderia objetivamente, isto é, sem necessidade de comprovação de sua culpa, mas que não se admitiria qualquer excludente de responsabilidade.

É, de fato, uma modalidade extremada na doutrina do risco para justificar o dever de indenizar mesmo nos casos de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior. Difere da teoria do risco administrativo, pois nesta a responsabilidade do Estado é afastada quando exclui o nexo causal.

4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL

No Brasil colônia, vigoravam as Ordenações do Reino de Portugal e suas leis complementares. Dentre elas, merecem destaque as Ordenações Filipinas, pois adotaram o princípio da responsabilidade pessoal do Juiz. Para assegurar essa responsabilidade pessoal, o juiz era obrigado a dar residência, com a obrigação de permanecer por certo tempo no lugar onde cumprira a função, para responder eventuais reclamações.

Em seguida, adveio a independência e a Constituição de 1824 que nada alterou. A novidade surgiu com a promulgação do Código Penal de 1980, que determinou o dever do Estado de indenizar o réu condenado por sentença criminal e depois reabilitado. O Código Civil de 1917 também continha diversos preceitos que impuseram ao juiz a responsabilidade pelos danos causados a terceiros.

O Código Penal de 1940, ainda hoje em vigor, definiu o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder: “Art. 350 – Ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”. Em seguida, a Lei 4898 de 1965 tratou da responsabilidade civil, administrativa e penal nos casos de abuso de autoridade.

O Código de Processo Penal de 1942 tratou da indenização do erro judiciário, atribuindo essa responsabilidade diretamente ao Estado, sujeitando-o à revisão da sentença condenatória.

As Constituições Federais de 1946 e 1967 nada disseram quanto à responsabilidade do Juiz.  No entanto, a carta magna de 1988, no título de direitos e garantias fundamentais, contém a seguinte norma: “Art. 5°, alínea LXXV – O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.

Além desse quadro legislativo, parte da doutrina e jurisprudência tem afirmado a irresponsabilidade do Estado por atos dos Juízes, exceto quando o dever de indenizar é expressamente previsto em lei. Essa posição encontra fundamento nas teses universalmente difundidas, como por exemplo: a soberania exercida pela autoridade judiciária, a força da coisa julgada e a necessidade de garantir a liberdade e a independência dos Juízes.

Primeiro, o Estado não responderia pelo ato do magistrado em decorrência da sua soberania.O Supremo Tribunal Federal assim decidiu em sessão plenária:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELOS ATOS DOS JUÍZES. C.F., ART. 37, § 6º.
I. – A responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do S.T.F. (STF – RE: 228035 SC, Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 25/10/2003, Data de Publicação: DJ 19/11/2003 PP-00050).

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. ATO JURISDICIONAL REGULAR. INDENIZAÇÃO. NÃO CABIMENTO. ANÁLISE DA OCORRÊNCIA DE EVENTUAL AFRONTA AO PRECEITO CONSTITUCIONAL INVOCADO NO APELO EXTREMO DEPENDENTE DA REELABORAÇÃO DA MOLDURA FÁTICA CONSTANTE DO ACÓRDÃO REGIONAL. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 13.6.2001. As razões do agravo não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada, mormente no que se refere ao óbice da Súmula 279/STF, a inviabilizar o trânsito do recurso extraordinário. Precedentes. O acórdão recorrido decidiu em consonância com a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal firme no sentido de que a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. (RE 228.977/SP, Rel. Min. Néri da Silveira, 2ª Turma, DJ 12.4.2002). Agravo regimental conhecido e não provido. (STF – RE: 605953 MG , Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 07/10/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-210 DIVULG 23-10-2014 PUBLIC 24-10-2014)

A segunda tese, a força de coisa julgada, fundamenta-se no conceito de que a coisa julgada é um instituto processual tido como expressão da verdade e importante para a segurança das relações e das decisões judiciais. Sendo assim, o Estado seria irresponsável pelas decisões do magistrado.

A terceira e última tese é a garantia da liberdade e independência do julgador. Segundo o doutrinador Carlos Maximiliano, a irresponsabilidade do Estado pelos atos dos magistrados provém da independência da magistratura, consequentemente a responsabilidade será pessoal.

Ocorre que, atualmente, um movimento defensor da ampliação da responsabilidade do Estado vem ganhando força. Ele tem como base motivos de ordem política e jurídica. Quanto aos fundamentos de ordem política, o estado de direito não é compatível com a ideia da irresponsabilidade, já que tem como objetivo a formação de um Estado moderno, democrático, igualitário e solidário. Do ponto de vista jurídico, o ato exercido pelo Juiz não se distingue ontologicamente das demais atividades exercidas pelo Estado. Na verdade, o serviço judiciário é uma espécie de serviço público, deve ser prestado tal qual os demais serviços públicos.

Neste sentido, leciona Cretella Júnior (2013, p. 143):

Realmente, o serviço judiciário é, antes de tudo, serviço público. Ora, serviço público danoso, em qualquer de suas modalidades é serviço danoso do Estado. Por que motivo, por exceção, a espécie serviço público judiciário, do género serviço público geral?

Assim, não se pode aceitar um tratamento distinto ao Estado em termos de responsabilidade civil, pois iria contra o direito e a justiça, ideais estatais, cuja persecução e manutenção justificam a existência do Estado. O Estado-Juiz decorre do Poder Público que pode, nessa qualidade, causar dano a terceiro, não havendo motivo jurídico para não se responsabilizar por esse prejuízo.

Os atos do Poder Judiciário diferenciam-se em dois tipos: jurisdicional e não-jurisdicional. Geram responsabilidade civil os dois diferentes tipos, porém os atos não-jurisdicionais por estarem na mesma situação que os administrativos próprios, não há qualquer dúvida sobre a possibilidade de responsabilização do Estado.

Adriano Aparecido Lima (2005, p. 2), por seu turno, leciona: “Quanto   aos atos administrativos praticados por órgãos do Poder Judiciário se equiparam aos demais atos da Administração, e, se lesivos, empenham a responsabilidade objetiva da Fazenda Pública”.

O problema se encontra no tocante a responsabilidade civil do Estado e até do próprio juiz sobre os atos jurisdicionais.

Para refutar as três teses contrárias a possibilidade do Estado ser responsabilizado, existem outros três fortes argumentos. Primeiro, no tocante a soberania do Poder Judiciário, a sua corrente defensora afirma que as funções por ele exercidas são revestidas de soberania estatal. Soberania esta que consiste na autoridade superior do Estado, ilimitada, e mediante ela o ente estatal impõe sua vontade, de forma definitiva, norteado pelo ideal de justiça. Porém, o Estado é indivisível, supremo e uno, e os três Poderes, legislativo, executivo e judiciário, existem para melhor alcançar o bem comum. Estes poderes não são, de fato, soberanos. Se assim fossem, eles mereciam um tratamento diferenciado.

Segundo, quanto ao argumento da imutabilidade da coisa julgada, o Código de Processo Civil em seu art. 502, dispõe: “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.

Diante disso, após a sentença transitar em julgado, a decisão adquire a qualidade de imutável e indiscutível. De fato, a presunção de verdade decorrente da decisão transitada em julgado e a segurança que dela decorre fundamentam a defesa da coisa julgada como obstáculo a responsabilidade do estado pela atividade jurisdicional, já que resultaria na instabilidade das relações jurídicas. Entretanto, contrário a a esse entendimento é o fato de que a decisão não significa a verdade ou a solução mais justa. A coisa julgada não pode ser vista de maneira absoluta, sob pena de encobrir algumas injustiças.

Finalmente, a independência do magistrado se refere a sua liberdade de atuação, isto é, ele é livre para analisar o caso concreto, interpretar a lei e aplicá-la do modo mais eficiente e adequado, porém esta liberdade é limitada, já que o juiz precisa fundamentar todas as suas decisões. Eis a jurisprudência do STJ:

EMENTA: Em se tratando de dano causado por magistrado no exercício da função jurisdicional a ação indenizatória deve ser ajuizada somente em face da respectiva pessoa de direito público, e não em face do magistrado, e isso  porque este se caracteriza como agente político do Estado, não se podendo, na hipótese, vislumbrar responsabilidade concorrente, mas apenas a que eventualmente vendo a decorrer do exercício do direito de regresso. (RE 228.977 – SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJ de 12/4/2002)

Sendo assim, percebe-se que os argumentos defensores da irresponsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, provenientes do exercício da soberania, do respeito à coisa julgada e da independência do juiz são rebatíveis.

5. ATIVIDADES JURISDICIONAIS CABÍVEIS DE INDENIZAÇÃO

No ordenamento jurídico brasileiro, há expressa previsão constitucional e legal para a responsabilidade estatal em pelo menos dois casos, a saber: a) erro judiciário: está previsto no art. 5., inc. LXXV, da Constituição Federal, assim redigido: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o qu ficar preso além do tempo fixado na sentença; e b) dolo, fraude, recusa, omissão ou retardamento injustificado: está contido no art. 133 do Código de Processo Civil, com a seguinte redação: “Responderá por perdas e danos o juiz, quando: i) no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; ii) recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte”.

No âmbito doutrinário, vozes têm surgido no sentido de se reconhecer o direito à indenização por danos decorrentes de atos judiciais.

Edemir Netto Araújo (1981, p. 179), em obra específica sobre o tema, leciona:

O Estado é civilmente responsável por danos causados ao administrado em decorrência de ato jurisdicional. A atividade jurisdicional é uma função do Estado: não é serviço administrativo, mas é serviço público (…). De qualquer modo, havendo dano ressarcível em dinheiro, e nexo causal, o Estado responde civilmente pelo ato de seu agente.

Por fim, não apenas no Brasil, mas também em diversos países, já se discute sobre a possibilidade de responsabilizar o Estado pela demora na prestação jurisdicional ou mais especificamente sobre como promover a responsabilidade estatal pela inobservância da duração razoável do processo.

José dos Santos Carvalho Filho (2005, p. 461) é taxativo ao asseverar a possibilidade de responsabilização do Estado por ato do Poder Judiciário pela inobservância da duração razoável do processo, nos seguintes termos:

(…) o art 37, da CF é claro ao fixar a responsabilidade estatal por danos que seus agentes causarem a terceiros, e entre seus agentes encontram-se, à evidencia, inseridos os magistrados. É o caso, por exemplo, em que o juiz retarda, sem justa causa, o andamento de processos (…)”.

Diante do exposto, não há dúvidas sobre a possibilidade de se exigir do Estado que repare um dano pela não-observância do princípio fundamental. Tal responsabilização, contudo, não pode ser imputada sempre e necessariamente ao Estado. Somente deve incidir em face do ente público quando a demora se der em duas ocasiões: erro judiciário ou falha do serviço judiciário.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No âmbito da matéria exposta, conclui-se que a responsabilidade civil é a obrigação de reparar economicamente os danos causados a terceiros, quer seja no âmbito patrimonial ou moral. Assim, em decorrência de um dano o Estado pode ser responsabilizado e, consequentemente, deverá pagar uma indenização afim de reparar os prejuízos causados. A partir deste contexto, o presente artigo priorizou o estudo sobre a responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais no ordenamento brasileiro.

De fato, a responsabilidade do Estado pelos danos provenientes do exercício da atividade jurisdicional é direta. Isto decorre do fato que Juiz age com dolo, fraude ou culpa grave no erro judiciário e em outros casos de mau funcionamento dos serviços da justiça.

A Constituição Federal prevê a responsabilidade objetiva do Estado, teoria do risco administrativo, e subjetiva do agente público, no que tange a obrigação de reparar o dano. Para o Estado, faz-se imprescindível a existência de três requisitos: a conduta comissiva ou omissiva decorrente da atividade judiciária; o prejuízo e o nexo causal entre eles. Porém, esta responsabilidade pode ser afastada, caso venha o dano seja decorrente de culpa exclusiva da vítima ou de terceiros, caso fortuito ou força maior.

Sendo assim, são inadmissíveis as três teses que fundamentam a irresponsabilidade estatal pelo exercício da soberania, a força da coisa julgada ou o respeito a independência do Juiz. E não há como negar que a evolução histórica da responsabilidade civil do Estado foi fundamental para a formação de um “Estado de direito”, já que passou a garantir maiores benefícios aos cidadãos, sobretudo, aos que foram lesados por ato estatal.

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[1] Graduada em Direito na Universidade Federal da Paraíba, Pós-Graduanda em Processo Civil, Direito Civil e Consumidor pela FESP Faculdades e advogada militante.

Como citar e referenciar este artigo:
ALMEIDA, Mayara Rayanne Oliveira de. A responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional no Brasil. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/a-responsabilidade-civil-do-estado-pelo-exercicio-da-funcao-jurisdicional-no-brasil/ Acesso em: 28 mar. 2024