Direito Civil

Novos contornos do Direito de Família

Novos contornos do Direito de Família

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

1. O matrimônio

 

O Código Civil, que se destina a regular a vida em sociedade por meio da edição de pautas de conduta, reconhece uma única forma de constituição da família, outorgando juridicidade somente ao relacionamento decorrente do casamento. Ausente qualquer definição ou tentativa de conceituação do que seja família ou casamento, limita-se a estabelecer requisitos para sua celebração, elenca os direitos e deveres dos cônjuges e, principalmente, prevê as seqüelas patrimoniais decorrentes da dissolução do vínculo conjugal.

 

Dita codificação, que data de 1916, inspirou-se no modelo de família do final do século passado, sujeita a forte influência do cristianismo, que tem o casamento como um sacramento e com a finalidade única de perpetuação da espécie.

 

O regime legal adotado foi o da comunhão total de bens, sendo obrigada a mulher a assumir o sobrenome do marido, levando à formação de uma unidade, quase a fundir seus integrantes.

 

De tal ordem a sacralização da família matrimonializada, que, mesmo sendo possível o desquite, permanecia a indissolubilidade do vínculo matrimonial, a impossibilitar novas uniões. A tentativa de manutenção do casamento fez a lei tornar indispensável a identificação do culpado pela separação, o qual não pode intentar a ação para dar ensejo ao seu fim. A perda do direito à percepção de alimentos e, no caso da mulher, também a sujeição à exclusão dos apelidos do marido são penalidades que atingem quem simplesmente teve a iniciativa da demanda, ainda que não fundada na ocorrência de culpa.

 

Era a família extensiva uma verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes e formando uma unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Uma entidade patrimonializada, identificando-se seus membros como força de trabalho, a ensejar, seu crescimento, melhores condições de sobrevivência a todos.

 

Evidenciava-se um perfil hierarquizado e patriarcal, face à necessidade de um dirigente – sempre o homem -, cuja vontade identificava o querer do grupo, daí ser ele o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal e o administrador dos bens da família. Essa a razão de a mulher, ao casar, perder sua plena capacidade civil, transformando-se em relativamente capaz, pois necessária era a mantença da autoridade marital. Bem definidos eram os papéis dos partícipes do clã: o homem como o provedor, responsável pelo sustento da família, e a mulher como mera reprodutora, restrita ao ambiente doméstico, à administração da casa e à criação dos filhos.

 

 

2. A união estável

 

Esse quadro não resistiu à revolução industrial, que fez aumentar a necessidade de mão-de-obra, principalmente nas atividades terciárias. A mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, com a diminuição do número de seus membros, restrita ao casal e sua prole.

 

Tais alterações ensejaram um certo embaralhamento de papéis. Face ao afastamento da mulher do lar, o marido começou a assumir algumas funções domésticas e a auxiliar no cuidado com os filhos. Com os novos horizontes do ambiente familiar, ocorreu uma maior aproximação entre seus membros, deixando de haver a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo, passando a ser valorado mais o vínculo afetivo de seus integrantes.

 

Também o início do movimento feminista e a descoberta dos métodos contraceptivos levaram ao surgimento de algumas posturas diferenciadas. Descobriu a mulher o direito à liberdade e, na busca das mesmas oportunidades, passou a almejar a igualdade, questionando a discriminação de que sempre foi alvo. Com a emergente evolução dos costumes, deixou de haver a total sujeição feminina ao marido e, apesar do verdadeiro repúdio da legislação a qualquer vínculo outro – que chamava de espúrio -, uniões começaram a surgir à margem do casamento. As novas famílias que acabaram se formando entre os partícipes advindos de anteriores relacionamentos não contam, até hoje, com um vocabulário adequado para identificar seus figurantes. Também não dispõe, ainda, de uma terminologia própria a relação dos filhos das uniões anteriores com os figurantes dessas novas famílias. Por exemplo: não existe uma palavra para nominar os novos companheiros e sua prole frente aos filhos das anteriores uniões de seu par. As expressões disponíveis – madrasta, enteado – são termos encharcados de preconceito.

 

Tais dificuldades, no entanto, não foram suficientes para impedir que ditas uniões florescessem, agora vincadas muito mais pelo afeto, elemento cuja exteriorização e publicização é valorizado para sua identificação.

 

Quando do desfazimento desses vínculos, seus membros, mesmo sem qualquer respaldo legal, acabaram batendo às portas dos tribunais. Porém, tal a rejeição à idéia de ver essa figura como uma família, que buscou a jurisprudência identificá-la como se de prestação de serviços domésticos se tratasse, ou, no máximo, a considerava uma sociedade de fato. Ditos subterfúgios eram utilizados para justificar a partição patrimonial, evitando-se o enriquecimento injustificado de um dos companheiros, sem que nada mais se cogitasse em conceder.

 

Essa nova realidade tornou-se tão aparente, que foi consagrada pela Carta Magna de 1988 e acabou produzindo uma profunda revolução na estrutura social. Alargou-se o conceito de família, que passou a albergar relacionamentos outros. A Constituição outorgou a proteção estatal tanto aos vínculos monoparentais – formados por um dos pais com seus filhos – como ao que chamou de união estável, relação de um homem e uma mulher ainda que não sacralizada pelo matrimônio.

 

Assim, deixou de ser o casamento o marco a identificar a existência de uma família e o único sinalizador do estado civil das pessoas. De tal envergadura a alteração, que intimidou os juízes, pois não conseguiram visualizar o dimensionamento da nova ordem jurídica, e nada foi alterado, não tendo havido qualquer avanço na concessão de direitos além dos que já vinham sendo deferidos.

 

Somente com o advento das leis que regularam o dispositivo constitucional – e isso em 1994 e 1996 – é que se começou a conceder alimentos, reconhecer o direito à herança, à habitação e de usufruto. Mas ainda há tanta resistência para enxergar essa nova realidade que alguns tribunais não aceitam, apesar de expressa determinação legal, que as ações sejam julgadas nas varas especializadas de família.

 

 

3. A relação homossexual

 

Buscando exercer, a Constituição, o controle social, emprestou juridicidade apenas às relações heterossexuais. Tal tentativa limitante, no entanto, não logrou impedir a convivência entre pessoas do mesmo sexo, as quais, na ocorrência de conflitos, também partem clamando por tutela judicial. Preconceitos de ordem moral ou ética não podem levar à omissão do Estado – quer por ausência de leis, quer por omissão do Judiciário – e com isso ensejar a consagração de injustiças. Reconhecer como juridicamente impossíveis pretensões de caráter patrimonial é chancelar o enriquecimento sem causa de parentes, em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem, participando na formação de um acervo de bens. Descabe julgar as opções de vida das partes, pois há que se cingir o juiz em apreciar as questões que lhe são postas, devendo centrar-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo.

 

Ainda que, quase intuitivamente, se conceitue a família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer-se que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são calcados no amor. Origina-se um novo estado civil, merecendo as ações respectivas ser apreciadas nas varas especializadas, pois não há como não identificar como família o relacionamento em que transparece o afeto como gerador de efeitos jurídicos. Nada diferenciam ditas uniões para que não possam ser identificadas como uma família, a ensejar, enquanto inexistir um regramento legal, a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam a união estável e o próprio casamento.

 

 

* Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Novos contornos do Direito de Família. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2000. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/novos-contornos-do-direito-de-familia/ Acesso em: 20 abr. 2024