Direito Civil

Culpado ou inocente?

Culpado ou inocente?

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

A averiguação e identificação de um culpado tem significado quando o agir de uma pessoa coloca em risco a vida ou a integridade física, moral, psíquica ou patrimonial de outrem ou de algum bem jurídico tutelado pelo Direito. Assim, a segregação de quem comete um ato que pode ameaçar a segurança da sociedade é a maneira eleita pelo Estado para assegurar a organização social.

 

No entanto, migrar o instituto da culpa para obter-se o desenlace do matrimônio não tem qualquer justificativa. Revela nítido caráter punitivo vedar ao “culpado” a iniciativa do processo de separação, assegurando legitimidade somente ao “inocente” para buscar a desconstituição do casamento (art. 1.572). Ou seja, quem não tem motivo, quem nada tem a imputar contra o par simplesmente precisa aguardar o prazo de um ano para buscar a separação (art. 1.572, § 1º) ou o decurso de dois anos para obter o divórcio (art. 1.580, § 2º). De outro lado, se o autor não logra provar a responsabilidade do réu pelo fim do casamento, o pedido de separação é desacolhido. O autor perde a ação e arca com os encargos sucumbenciais. E, as partes continuam casadas, mesmo depois de todo o desgaste de um processo judicial.

 

Não são exclusivamente esses os motivos que evidenciam o absurdo de o novo Código Civil ter mantido, e até tornado mais severa, a necessidade de identificar um culpado pela separação, impondo conseqüências de várias ordens.

 

A Constituição Federal é chamada de Constituição cidadã por priorizar a dignidade da pessoa humana. Como a liberdade é pressuposto do Estado Democrático de Direito, são consagrados como fundamentais os direitos à privacidade e à intimidade, Assim, não é somente paradoxal, é nitidamente inconstitucional impor a quem busca a separação que invada a privacidade e desnude a intimidade do outro, sem que se possa atinar a razão de o Estado se imiscuir na vida privada de um casal e condicionar a desconstituição do casamento à identificação de um culpado.

 

Cresce a perplexidade ao se perceber que tal exigência existe somente por diminuto lapso de tempo. É que somente se impõe a comprovação da causa do fim do vínculo matrimonial pelo período de um ano. Após decorrido esse  prazo temporal, qualquer um pode pedir a separação pelo só decurso desse interstício. Mas, se o casal esperar mais um ano, é possível a qualquer um pedir o divórcio, demanda onde não cabe questionar a causa do desenlace do matrimônio. Há outra hipótese em que a causa da separação perde a razão de ser. Quando da conversão da separação em divórcio, o culpado é absolvido, pois é vedado que a sentença revele o motivo da separação (art. 1.580, § 1º).

 

No entanto, a lei não contempla a única causa que pode tornar insuportável a vida em comum. Nenhuma das diversas hipóteses ressuscitadas pelo novo Código Civil permite a identificação de um culpado. O que elenca a lei são meras conseqüências de uma única causa. Somente comete adultério, tenta matar, ou age da forma preconizada no art. 1573, quem não ama mais. O exaurimento do vínculo de afetividade é a única causa que leva alguém a agredir, abandonar, manter conduta desonrosa. Tais atitudes são meros reflexos do fim do amor.

 

A perquirição da culpa, além de ser de todo impertinente, tem seqüelas perversas. Evidencia que o interesse do legislador é simplesmente a mantença dos sagrados laços do matrimônio, punindo quem dele quer se afastar. O culpado perde a própria identidade, pois o uso do nome depende da benemerência do inocente (art. 1.578). Ainda que não mais seja condenado a morrer de fome[1], o responsável pela separação irá receber alimentos tão-só para assegurar a sobrevivência (art. 1.704, parágrafo único). Afora tal, a inocência do cônjuge sobrevivente garante-lhe direitos sucessórios ainda que separado de fato há dois anos (art. 1.830).

 

Não bastasse tudo isso, não deixa de causar estranheza que toda essa averiguação só cabe no processo de separação, sendo absolutamente despicienda quando se trata de união estável. Nada mais é preciso além da identificação do termo inicial e final do período de convívio para a declaração do desfazimento da entidade familiar extramatrimonial.

 

Ainda que seja dolorido ver o sonho do amor eterno desfeito, ninguém manda no coração e ninguém pode ser condenado por deixar de amar. Portanto, de todo descabida a mantença do instituto da culpa para se chancelar a desconstituição do casamento, devendo ser respeitada a vontade de cada um dos cônjuges. Injustificável causar prejuízos, impor perdas ou proclamar culpados, se o amor acabou!

 

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2003. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/culpado-ou-inocente/ Acesso em: 28 mar. 2024