Direito Civil

O regime legal da união estável

O regime legal da união estável

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

De primeiro, cabe buscar uma definição de família. É intuitivo identificar família com a noção do casamento, ou seja, um conjunto de pessoas ligadas a um casal, unidos pelo vínculo do matrimônio e tendo a figura paterna como o chefe dessa entidade.

 

            No entanto, essa concepção vem, principalmente nas últimas décadas, sofrendo uma profunda transformação, pois, além de haver uma diminuição do número de seus componentes, houve o embaralhamento de papéis, trazendo novos contornos ao conceito de família.

 

            No cristianismo, a única maneira possível de formar uma família era por meio de casamento entre um homem e uma mulher com nítido interesse na procriação. Essa visão conservadora levou o legislador pátrio, ao redigir o Código Civil, em 1916, a reconhecer juridicidade apenas ao matrimônio, em que o homem é o chefe da sociedade conjugal, o cabeça do casal sendo quem administra os bens da mulher e dos filhos.

 

            A previsão do regime da comunhão universal de bens e a imposição à mulher de adotar os apelidos do marido mostram o significado que tinha o casamento. Duas pessoas fundiam-se numa só, formando uma unidade patrimonial identificada pela figura paterna. Quando acontece o rompimento desse vínculo, dificuldades surgem na partição do patrimônio, pois a tendência é buscar imputar a culpa a uma das partes, para assim a outra levar consigo a maior parte do acervo patrimonial.

 

            Com o regime legal da comunhão parcial, imposto a partir da Lei do Divórcio, que data de 1977, restou afastado o condomínio na herança, legados e doações e a de adoção do nome do marido se tornou uma faculdade.

 

            Necessário ter presente que, por criação pretoriana, o estado de comunhão perdura enquanto persiste a convivência more uxorio. A separação de fato enseja o fim da sociedade conjugal o que marca o término do estado condominial. Assim, os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges só a eles passa a pertencer, ainda que legalmente permaneça na condição de casado.

 

            Até bem pouco tempo atrás, a legislação somente regulava relações oriundas do casamento. As relações extramatrimoniais não geravam qualquer conseqüência jurídica. No entanto, a falta de regramento não impediu que essas relações surgissem e fossem bater às portas do Judiciário, quando de seu rompimento. Em face do rigorismo da lei civil, viram-se os juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças, tendo sido usada a expressão companheira em nível jurisprudencial, como forma de contornar as proibições legais para o reconhecimento dos direitos banidos pela lei.

 

Em um primeiro momento, se passou a ver verdadeira relação laboral, ensejando o pagamento de indenização por serviços prestados quando inexistente patrimônio a ser partilhado. Após, aplicou-se por analogia o direito comercial, pela aparência de uma sociedade de fato entre os convivas dividindo-se os bens adquiridos durante a vida em comum.

 

Tais decisões, no entanto, jamais ousaram conceder, por exemplo, alimentos ou permitiram o reconhecimento do direito de habitação na residência comum.

 

Somente com a chamada Constituição Cidadã, de 1988, é que se buscou atentar à realidade social. Acabou o constituinte por alargar o conceito de família, dando juridicidade ao relacionamento entre um homem e uma mulher, afastando, assim, o pressuposto do casamento para configuração da família. Tal relação foi nominada de união estável. Ainda assim, difícil foi ampliar os direitos que já vinham sendo reconhecidos na Justiça, inclusive com questionamentos acerca da auto-aplicabilidade da norma constitucional. Nem o deslocamento das demandas para varas especializadas era aceito, revelando-se como exceção a postura do Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul, que, na Súmula nº 14, expressamente reconheceu a competência das Varas de Família.

 

Após 6 anos da promulgação da Constituição Federal é que surgiu a primeira lei regulando a previsão constitucional. A Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994, reconheceu como estável a união com vigência de 5 anos ou com prole, permanecendo à margem de sua incidência também as relações em que havia vedação de casar de alguma das partes, ou seja, quando uma das partes era apenas separada de fato. A lei conferiu alimentos, incluiu o companheiro na ordem de vocação hereditária, concedendo-lhe o usufruto da metade ou da quarta parte dos bens, a depender da existência de filhos, e deferiu direito à meação quando a herança resultou da colaboração do companheiro.

 

Em 10 de maio de 1996, surgiu a Lei nº 9.278, com maior campo de abrangência, definindo como união estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituir família. Não quantificou o prazo mínimo de convivência para o reconhecimento da união estável. Além disso, albergou as relações entre pessoas separadas de fato, fixou a competência das Varas de Família para o julgamento dos litígios, e previu o direito real de habitação mas nada referiu sobre o direito à herança e usufruto. Ao gerar a presunção de que os bens adquiridos são fruto do esforço comum, acabou por deslocar o ônus probatório da inexistência da colaboração do par – que pela lei anterior era do companheiro – para aquele que disputar a herança, querendo afastar o direito à meação.

 

Com a existência de duplo regramento para nortear essas relações, há uma certa divergência doutrinária e jurisprudencial quando da aplicação de um ou de outro estatuto legal. Uns entendem cabível a aplicação da Lei nº 8.971/94 somente às relações que se encaixam na sua definição legal, ou seja, só integraria a ordem de vocação hereditária se a união tivesse perdurado por mais de 5 anos com a ausência de filhos e que as pessoas envolvidas não tivessem impedimento para casarem, excluindo assim os separados de fato. De outro lado, as relações reconhecidas pela Lei nº 9.278/96 só desfrutariam do direito real de habitação, sem a possibilidade de herdar.

 

Necessário, no entanto, reconhecer que esses dois regramentos não se excluem nem se incompatibilizam. Atualmente existe um único conceito de união estável, que é o posto na Lei nº 9.278/96: convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Outro não pode ser o entendimento, sob pena de se reconhecer a existência de duas categorias ou duas espécies de entidades familiares não-matrimonializadas, o que não está na Constituição Federal.

 

Se o conceito é único, os direitos e prerrogativas constantes dessas duas leis são aplicados conjuntamente, ou seja, concede-se à união estável o direito a alimentos, direitos sucessórios, direito real de habitação, direito à meação. Não tendo havido revogação expressa de uma lei pela outra, e não se incompatibilizando os direitos previstos em cada uma delas, imperioso reconhecer que elas se completam. A nova lei veio tão-só redefinir o conceito de entidade familiar e explicitar novos direitos assegurados a esses relacionamentos.

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. O regime legal da união estável. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2004. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/o-regime-legal-da-uniao-estavel/ Acesso em: 18 abr. 2024