Direito Agrário

Responsabilidade civil na propriedade rural e função social da terra

LIABILITY IN RURAL PROPERTY AND SOCIAL FUNCTION OF THE EARTH

Mayara Rayanne Oliveira de Almeida[1]

RESUMO

O direito de propriedade é garantido pela Constituição Federal. Com isso, o indivíduo que é proprietário de uma terra possui determinadas responsabilidades sobre ela. Com a propriedade rural, a responsabilização civil existe e decorre de diversas situações, recaindo, também, sobre diferentes entes. Ademais, sobre essa propriedade rural, incidem requisitos que configuram a função social da terra. Dessa forma, a proposta do presente trabalho é proceder uma análise da responsabilidade civil na propriedade rural, assim como o estudo da função social da terra, relacionando-o com os princípios constitucionais.

PALAVRAS-CHAVE: Propriedade rural. Função Social da terra. Responsabilidade Civil.

ABSTRACT

The right of ownership is guaranteed by the Federal Constitution. With this, the individual who owns a land has certain responsibilities over it. With rural property, civil accountability exists and stems from various situations, also falling on different entities. In addition, on this rural property, there are requirements that shape the social function of the land. Thus, the purpose of this study is to analyze the civil responsibility of rural property, as well as to study the social function of the land, relating it to constitutional principles.

KEY WORDS: Rural property. Social function of the land. Civil responsability.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende realizar um estudo sobre a conjuntura atual da responsabilização civil na propriedade rural, a qual recai sobre o Estado, o proprietário e o posseiro, detentor da terra. Da mesma forma, propõe a análise da função social da terra, fazendo um paralelo com outros fundamentos principiológicos e constitucionais.

Nesse diapasão, afirma-se a necessidade de uma interação entre os diversos ramos jurídicos para que se conclua a quem incumbe cuidar da propriedade rural. Dessa maneira, será estudada, além da função social da propriedade rural, a sua função socioambiental e a tripartição da responsabilidade ambiental.

Nesse intento, o presente artigo se subdivide em dois tópicos. O primeiro trata da responsabilidade civil na propriedade rural e versará sobre a responsabilidade dos três responsáveis pela sua proteção, analisando a função socioambiental, finalizando-se com a responsabilidade ambiental tripartida. O outro tópico correlacionará o princípio da função social da terra com os demais princípios constitucionais.

2 RESPONSABILIDADE CIVIL NA PROPRIEDADE RURAL

2.1 RESPONSABILIDADE DO POSSEIRO, PROPRIETÁRIO E DO ESTADO 

No âmbito do direito agrário, o posseiro e o proprietário possuem responsabilidades atinentes a si, havendo o envolvimento de diversos outros ramos da ciência jurídica, tendo em vista que uma propriedade rural, para cumprir a sua função social, deve haver respeito de forma holística, compreendendo o direito tributário, os princípios constitucionais, além da obediência aos ditames da seara trabalhista.

Dessa forma, deve-se enfatizar a responsabilidade sob os primados do Direito Ambiental. A Constituição Federal vigente pressupõe em seu artigo 225, caput, que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Sob esse prisma, a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente estabelece em seu artigo 14, §1°, a responsabilidade objetiva daquele que degrada o meio ambiente, prescindindo do elemento culpa. Não obstante essa inovação, a Lei n° 6.938/81, embora anterior à Constituição, foi plenamente recepcionada pela mesma. Tal vertente se aplica tanto às pessoas físicas como às jurídicas, podendo ser responsabilizadas nas esferas cível, administrativa e penal.

A responsabilidade civil no dano ambiental também é solidária, ou seja, qualquer um que tenha contribuído para que o dano ocorresse serão responsabilizados, devendo haver a reparação integral do prejuízo, independentemente do grau de participação. Tal responsabilidade engloba até mesmo as instituições financeiras que fornecem empréstimos aos proprietários rurais.

Esta responsabilidade atribuída aos bancos é vista com um importante meio de fiscalização indireta dos danos que possam vir a ser vislumbrados na prática. Nesse sentido, há um embate: os bancos têm o interesse de oferecer crédito ao produtor rural, mas não querem ter a chance de ter que arcar com os prejuízos advindos de uma eventual condenação judicial das propriedades rurais por eles financiadas. Por outro lado, os proprietários rurais e posseiros, têm grande interesse em receber o crédito bancário, buscando os meios cabíveis para adequar sua propriedade às exigências da instituição, com vistas a obter a aprovação do seu empréstimo. Cumpre destacar que, nos moldes do art. 1.518, caput, segunda parte, do Código Civil, a solidariedade é independentemente de acordo prévio ou unidade de propósitos.

Quanto à responsabilidade que incorre ao Estado, tem-se que esta pode ser compreendida como uma forma de resistência à exacerbada força estatal, que muitas vezes se aproveita do seu poder, para negar os direitos fundamentais. À luz do artigo 225, § 3° da Constituição Federal, é possível verificar duas espécies de responsabilidades estatais, quais sejam: administrativa e civil. No enfoque administrativo, destaca-se o poder de polícia, atinente à questão das sanções administrativas, que para Celso Fiorillo (2009):

É atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato em razão de interesse publico vinculado à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina de produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou mesmorespeito à propriedade e aos direitos individuais e coletivos.

A ausência de uso do poder de polícia estatal gera os mais acentuados problemas quanto à responsabilização solidária do Estado por dano ambiental provocado por terceiro. Em que pese haver divergência doutrinária, entende-se que não se pode considerar unicamente a responsabilidade do estado como objetiva, nem acolher de forma irrefutável a solidariedade e a responsabilidade fundada na teoria do risco integral.

É imprescindível a análise das diversas possibilidades ensejadoras de responsabilidade estatal, de modo a conferir a cada uma delas tratamento adequado. Para tanto, é imperioso considerar fatores tais como a responsabilidade solidária do Estado por ação ou omissão de agente público. É importante analisar também a responsabilidade solidária do Estado decorrente do descumprimento do dever de agir e de legislar.

A responsabilidade estatal pode ser omissiva decorrente do dever de legislar sobre direitos fundamentais à terra, como pelo dano resultante do ato legislativo que impõe medidas restritivas ao exercício de uma atividade rural. No que diz respeito à primeira citada, não obstante os avanços doutrinários, trata-se de uma tese que não encontra grande respaldo jurisprudencial, tendo em vista que isso geraria perdas tremendas ao Estado. Quanto à segunda corrente, os Tribunais Superiores já apresentaram diversos precedentes.

Um exemplo de responsabilização do Estado por suprimir o pleno exercício do direito de propriedade, a exemplo das restrições impostas por lei especial à derrubada de matas, pelo proprietário rural com vistas à preservação de reservas florestais, colaciona-se julgados do STJ:

STJ. 1ª Turma.: Não é negado ao Poder Público o direito de instituir parques nacionais, contanto que o faça respeitando o sagrado direito de propriedade, assegurado pela Constituição. Não é para confundir as limitações da lei nº 4771/65 com a proibição de desmatamento e uso da floresta que cobre totalmente a propriedade, porque seria ‘interdição de uso de propriedade’, salvo indenização devida. (13.3.91, RDA 183/134)

STJ. 1ª Turma. : Ao direito do Poder Público de instituir parques corresponde a obrigação de indenizar em respeito ao direito de propriedade assegurado pela Constituição. Há que se distinguir a simples limitação administrativa da supressão do direito de propriedade. A proibição de desmatamento e uso de floresta que cobre a propriedade é interdição de uso da propriedade, só possível com indenização prévia, justa e em dinheiro, como compensação pela perda total do direito de uso da propriedade e desaparecimento de seu valor econômico. (REsp. 19.630, 19.08.92, DJU, I, 19.10.92, p. 18.217)

Pelo que foi dito, pode-se considerar que o ordenamento jurídico pátrio tem procurado conferir maior segurança jurídica e proteção dos princípios norteadores do Direito Agrário. Assim, nem mesmo o Estado está imune de sofrer sanções em decorrência de ações ou omissões que venham a macular esse sistema normativo protecionista. Entretanto, verifica-se que a Administração Pública possui algumas benesses em relação aos proprietários e posseiros, notadamente nos requisitos necessários para ensejar a responsabilidade civil.

2.2 A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE RURAL

A Constituição Federal de 1988 elevou o princípio da função social da propriedade à condição de direito fundamental, presente no artigo 5º, inciso XXIII. Nítida evidência de que o legislador constituinte, de início, além de elencar a propriedade no conjunto dos direitos e deveres individuais e coletivos, a reconhece como direito fundamental, conforme determinado no art. 5º, XXII, CRFB/88, sem, contudo, esquecer-se da função social, elencada no inciso consecutivo.

Não há, juridicamente, o estigma autoritário do império da propriedade, plena e absoluta, antes vigente no Código Civil de 1916. O legislador, com o escopo de limitar a propriedade e explicar o que entendia por função social, estabeleceu, no art. 186 da Carta Magna, critérios que compõem a utilização funcional do imóvel rural, dentre os quais, a utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente.

A esta modalidade de funcionalização se tem dado o nome de “função social ambiental” ou função “socioambiental”. Tamanha importância foi dada à função social, consequentemente ao meio ambiente, que o descumprimento deste caráter funcional da terra permite a desapropriação do imóvel.

Ao tratar da Ordem Econômica e Financeira, a CRFB/88 ratifica o princípio da propriedade privada, art. 170, II e o princípio da função social, art. 170, III. Contudo, insere explicitamente o princípio de defesa do meio ambiente, art. 170, VI, um dever jurídico de observância inarredável.

No Código Civil de 2002, o legislador não tratou a questão socioambiental de forma diferente, dada a grande relevância pós-moderna. No art. 1.228, § 1º, assevera que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que favoreça a preservação e conservação do meio ambiente.

A função social não é exclusiva da propriedade – hoje em dia se discute as teorias sociológicas da posse, v.g., onde a função social também seria elemento da posse – tampouco do direito privado, mas é de todo o Direito, uma vez que vivemos não apenas em um Estado Democrático de Direito, mas também Social e Ecológico.

A função social, em outras palavras, faz-nos compreender que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. Função social significa não-individual e o seu objetivo é o bem comum, o bem-estar econômico coletivo. E por tudo isso, ela é um princípio geral, um verdadeiro standard jurídico, uma diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programática que não colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos (AMARAL, 2003, p. 367 e 368).

A ideia de função social está vinculada à propriedade privada. Isto porque, a função social estaria implícita na função pública da propriedade estatal e presumida no contexto da propriedade coletiva. A função social integra hoje o conceito de propriedade privada, alterando profundamente sua estrutura jurídica e legitimando o exercício dos poderes que lhe são inerentes.

Desta forma, a propriedade que não cumpre o ditame da função social deixa de ser merecedora de proteção pelo próprio Direito, pois a ela falta um de seus elementos. O não uso ou uso desvirtuado da propriedade configura abuso de direito, ato ilícito, art. 187, CC/02, posto que o proprietário tenha ultrapassado manifestamente os limites impostos pela ordem jurídica.

O art. 186 da CRFB/88, em coaduno com o art. 2º, § 1º, da Lei n. 4.504/1964, Estatuto da Terra, estabelece os requisitos para o integral cumprimento da função social da propriedade, dividindo-os em três dimensões: econômica – aproveitamento racional e adequado (inciso I); ambiental – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (inciso II); e social – observância das relações que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores (incisos III e IV).

A função ambiental da propriedade agrária torna-se indispensável no momento em que concilia o desenvolvimento econômico e a proteção do meio ambiente favorecendo assim a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente.

No que tange à imprescindibilidade da função ambiental para a segurança dos próprios proprietários não é mero discurso do legislador. Há uma dupla proteção: do meio ambiente e da propriedade. Pelo ângulo do interesse individual do proprietário, a prevenção de danos ambientais favorece, principalmente, a manutenção do potencial produtivo do solo rural.

A Lei n. 8.629/1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, no art. 9º, §§ 2º e 3º, traz os conceitos de “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis” e de “preservação do meio ambiente”:

Art. 9º:

§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.

§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.

A dimensão ambiental está contemplada nos meandros da função social. Contudo, pelo exposto, a tutela dos bens ambientais gera um direito que se demonstra superior ao direito de propriedade, cuja titularidade materialmente considerada deve ceder lugar à sua representatividade social.

Não é despiciendo recordar a proteção ao meio ambiente dada pelo art. 225 do texto constitucional, sendo pragmático ao estabelecer que todos possuem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Diversas imposições têm emanado nos últimos anos da legislação e da jurisprudência no intuito de solucionar questões ambientais atinentes à propriedade agrária.

Contudo, é dos proprietários rurais e, principalmente, do Poder Público, a responsabilidade em tornar efetiva tal promoção ambiental. A efetividade da função socioambiental da propriedade agrária implementa os valores da ética ambiental, sobretudo diante do quadro atual de desconsideração pelos princípios ambientais da precaução e da prevenção.

Dessa forma, na doutrina Eros Roberto Grau (1997), a função socioambiental direciona a realização de prestações positivas e negativas do proprietário, uma vez que o seu dever não se resume apenas a não causar prejuízo a terceiros ou a qualidade ambiental (prestação negativa), mas a evitar o dano ao meio ambiente, recompor vegetação ou floresta danificadas, preservar a fauna e a flora, dentre outras medidas, de forma a beneficiar a sociedade e o ecossistema (prestação positiva).

Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se firmado no sentido de impor ao proprietário rural o dever de manutenção, preservação, recuperação e recomposição da vegetação em áreas de preservação permanente (APP) e reserva legal, ainda quando não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento, pois a manutenção da preservação nessas áreas constitui obrigação propter rem, isto é, dever indissociável, vinculado ao titular do direito real.

Assim, a função socioambiental é a imposição, em sentido prático, do respeito à fauna, à flora e à diversidade ecológica, cujo desrespeito implica, diretamente, a deterioração do meio ambiente e, indiretamente, própria existência humana. Daí o justificável valor jurídico-constitucional condicionador do direito de propriedade.

2.3 A Tríplice Responsabilidade Ambiental

Conforme o art. 225, § 3º, da CF, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Nesse diapasão, ressalta-se que tanto a pessoa física quanto jurídica, causadora do dano ao meio ambiente, pode ser responsabilizada civil, administrativa e, sobretudo, penalmente em função do dano.

Dessa forma, passa-se a análise pormenorizada de cada um dos institutos.

Quanto à responsabilidade civil ambiental, cumpre-se destacar que se trata de responsabilidade objetiva, isto é, prescinde da existência de dolo ou culpa.

Tal afirmação encontra respaldo na Lei 6.938/81, que no parágrafo primeiro do seu art.14, determina “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”

No mesmo sentido leciona Gonçalves (2011) ao afirmar que a responsabilidade civil ambiental independe, pois, da existência de culpa e se funda na ideia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os danos advindos de seu empreendimento. Basta, portanto, a prova da ação ou da omissão do réu, do dano e da relação de causalidade.

Ademais, deve-se destacar que a responsabilidade civil pelo dano ambiental está calcada na teoria do risco integral em que a responsabilidade, além de não depender do elemento subjetivo, não admite excludentes, como a culpa exclusiva da vítima ou o caso fortuito.

Nesse sentido, coleciono o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

[…] acerca da responsabilidade ambiental e suas excludentes, também destacou que o meio ambiente, como bem difuso de todos, deve ser preservado ou conservado e, quando danificado, reparado de forma objetiva, sem necessidade de apuração da existência de culpa. (…) existindo dano, basta identificar o autor, os autores e o nexo causal, pois não existirão excludentes da responsabilidade. Inclusive, nem o caso fortuito e a força maior podem afastar o dever de reparar o meio ambiente (grifo nosso).

Por outro lado, a responsabilidade administrativa ambiental, também prevista na Constituição Federal, implica na aplicação de sanções aos poluidores. 

De fato, a doutrina afirma que as sanções administrativas estão relacionadas com o poder de polícia da Administração, uma vez que limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato em razão de interesse público vinculado à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou mesmo respeito à propriedade e aos direitos individuais e coletivos (FIORILLO, 2011).

A Lei dos Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/98) enumera as sanções administrativas, especialmente em seus artigos 70 a 76, bem como define infração administrativa ambiental, como sendo “toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente” (OLIVEIRA, 2012).

Por seu turno, no tocante a responsabilidade penal, a Constituição prescreve que tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica devem ser responsabilizadas pela prática de crimes ambientais, inovando, portanto, no concernente à responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Contudo, na esfera penal faz-se necessária a presença do dolo ou da culpa, isto é, a responsabilidade sempre será subjetiva.

Outrossim, deve-se ressaltar que a jurisprudência predominava no sentido de reconhecer a responsabilidade da pessoa jurídica apenas com a responsabilização vinculada da pessoa natural, tratava-se da teoria da dupla imputação, com previsão no art. 3º da Lei 9.605/98.

Entrementes, o STF consolidou o entendimento no sentido de ser possível manter a condenação da pessoa jurídica mesmo que fique comprovado que seu representante legal não praticou o delito. No julgamento do AgR no RE 628582/RS, o Ministro relator, Dias Toffoli consignou em seu voto que:

[…] Ainda que assim não fosse, no que concerne à norma do § 3º do art. 225 da Carta da República, não vislumbro, na espécie, qualquer violação ao dispositivo em comento, pois a responsabilização penal da pessoa jurídica independe da responsabilização da pessoa natural.

Relevante discussão jurisprudencial foi travada com relação à possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica de direito público. No entanto, o TRF-4 pacificou o entendimento, nos seguintes termos:

CRIME AMBIENTAL. ART. 48 DA LEI 9.605/98. RESPONSABILIZAÇÃO DE PESSOA JURÍDICA DESVINCULADA DA PESSOA FÍSICA. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIZAÇÃO DE ENTE PÚBLICO. VIABILIDADE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. HERMENÊUTICA JURÍDICA. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA. MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS. FACTIBILIDADE DE FIGURAR COMO RÉU. IMPEDIR/DIFICULTAR REGENERAÇÃO DE VEGETAÇÃO. DESÍGNIO AUTÔNOMO. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO DEMONSTRADOS. CONDENAÇÃO. CULPABILIDADE E MOTIVOS. AFASTAMENTO DA VALORAÇÃO NEGATIVA. REDUÇÃO DA MULTA. 1. De acordo com recentes entendimentos dos Tribunais Superiores, a teoria da dupla imputação, segundo a qual a responsabilidade penal da pessoa jurídica não poderia ser dissociada da pessoa física atuante em seu benefício, não encontra suporte jurídico, já que não há tal exigência no art. 225, § 3º, da Constituição Federal. Logo, é possível a responsabilização, em isolado, da pessoa jurídica envolvida na prática de crime ambiental. 2. A responsabilização criminal de pessoa jurídica de direito público encontra farto suporte jurídico, decorrente: 2.1) do princípio da legalidade, na medida em que, ao atribuir a responsabilidade criminal de pessoas jurídicas pela prática de ilícito ambiental, o art. 225, § 3º da CF e o art. 3º da Lei 9.605/98 não fizeram distinção alguma entre as pessoas de direito público e as de direito privado; 2.2) das regras de hermenêutica jurídica, tendo em vista a orientação de que não compete ao intérprete distinguir o texto legal quando, podendo, o legislador não o fez; 2.3) do princípio da isonomia, porquanto não se justifica tal isenção em detrimento das pessoas jurídicas de direito privado, precipuamente levando em conta que é obrigação constitucional dos entes públicos a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado; 2.4) do princípio da eficiência, eis que o meio ambiente será melhor salvaguardado se os entes públicos puderem, também, ser responsabilizados criminalmente, mormente porque não é incomum que tais entidades atuem como sujeitos ativos de delitos ambientais; 2.5) do fato de que, embora tenham sido criadas para defender o interesse público, as entidades em tela muitas vezes cometem arbitrariedades, devendo existir instrumento apto a coibir agressões a direitos que deveriam ser, por aqueles mesmos, garantidos; 2.6) da possibilidade de aplicação de pena, em simetria ao que ocorre na esfera cível, isto é, imposição de pagamento em pecúnia ao ente público, assegurada ação regressiva contra a pessoa física que causou o dano (…). (TRF-4 – ACR: 5749020094047200 SC 0000574-90.2009.404.7200, Relator: Relatora, Data de Julgamento: 01/07/2014, SÉTIMA TURMA, Data de Publicação: D.E. 17/07/2014)

Portanto, não restam dúvidas de que a pessoa jurídica pode ser responsabilizada penalmente em matéria ambiental, ainda que a pessoa física não seja responsabilizada.

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

No fim do século XIX, a concepção da função social da propriedade empeçou a tomar forma, entre às noções da propriedade privada dominantes, à época, quais sejam a ultraliberal e a negativa da propriedade privada como direito individual.

Apesar de Santo Tomás de Aquino, na Suma teológica, haver tratado da questão da propriedade e o bem comum, são considerados como precursores da função da função da propriedade August Comte e Leon Duguit, positivistas do final do século XIX e início do sec. XX.

3.1 ANÁLISE PRINCIPIOLÓGIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

Os princípios da função social da terra e da propriedade rural, encontram fulcro nos seguintes dispositivos, conforme declina a Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

II – a propriedade produtiva.

Parágrafo único A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Ademais desses pilares, a Lei nº 4.504/64, conhecia como o Estatuto da Terra, demonstra perfeita sincronia com o texto constitucional, estabelecendo que:

Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.

Dessa forma, delineada queda a base legal do referido princípio. Entrementes, nota-se que o predicado de instrumento de justiça social foi atribuído ao direito de propriedade social, sendo que é exatamente essa a realização da função social, que legitimará o direito à propriedade.

O Estatuto da Terra ainda preceitua que: “Art. 1° Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”. Com isso, conclui Medeiros de Souza (1987) que: “a função social da terra é o fundamento do próprio Direito Agrário Brasileiro”, ressaltando que:

A função social há de ser entendida como emanação do Estado de Direito e resultante do equilíbrio entre direitos e obrigações do cidadão individualmente considerado. Projetado esse equilíbrio sobre a coletividade, sob a égide do Estado de Direito, resulta daí a chamada função social, que, partindo dos interesses individuais, atinge os coletivos, sem que haja, em qualquer sentido, atentado aos direitos individuais assegurados pela Constituição Federal. É exatamente sob esse prisma que deve ser estudada a função social da terra, como fundamento do direito agrário brasileiro. Afinal, não fora a busca dessa função social, o direito agrário não teria sentido.                                                         

Outrossim, ao contrário do senso comum, a função social da propriedade diferencia-se, em muito, dos sistemas de limitação da propriedade, eis que referem-se à estrutura do direito à propriedade, em si e, não ao exercício do direito ao proprietário.

Nesse sentido, Telga de Araújo acentua que:

Na doutrina jurídico agrária, em particular a função social da propriedade consiste na correta utilização econômica da terra e sua justa distribuição, de modo a atender um bem-estar da coletividade, mediante o aumento da produtividade e da promoção da justiça social.

Dessa forma, conclui-se que a função social é o fundamento do próprio direito agrário brasileiro e um instrumento da busca pela justiça social.

3.2 ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA DA FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA

A Constituição Federal de 1988 traz princípios e valores que devem ser observados pelo legislador infraconstitucional ao elaborar as normas, uma vez que os princípios constitucionais são fundamentais para a interpretação e integração da Constituição e de todo o ordenamento jurídico, com o intuito de manter a unidade e coerência desse ordenamento.

O título I da Constituição trata dos Princípios Fundamentais, inclusive trazendo à baila os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil.

Assim, a Constituição busca assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, não fazendo distinção de origem, raça, sexo, cor, idade ou de qualquer outra ordem. Deste modo, traz como princípio constitucional no seu art. 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, cuja aplicação deve ser antecessora de outros valores e princípios, pois a pessoa humana é a razão de todas as garantias constitucionais.

É com base na dignidade humana que o princípio da função social da propriedade faz-se necessário. Sua existência não é apenas questão de ordem econômica (art. 170, III, da CF/88), mas também faz parte das garantias e direitos fundamentais, estando presente no inciso XXIII do artigo 5º, da Constituição.

Assim, o princípio da função social está em consonância com os valores buscados pelo Estado Democrático que a Constituição estabeleceu, ou seja, assegurar a todos existência digna, de forma a construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

Nesse sentido, o direito a propriedade, disposto juntamente com os direitos à vida, à liberdade e à igualdade, está em total sintonia com o princípio da função social. Não há que se ver o princípio da função social como contrário ao direito de liberdade ou ao próprio direito de propriedade, uma vez que os direitos e garantias constitucionais devem ser vistos como um sistema integrado, e, para tanto, não se pode considerar os direitos fundamentais como indiscutíveis ou absolutos.

Deste modo, afirmar que o princípio da função da sociedade é um limitador do direito de propriedade e até mesmo do princípio da liberdade, é relativa, pois se pode perceber que a função social também pode ter um caráter assecuratório do princípio da liberdade. Na verdade, a relativização do direito de propriedade pode ser uma forma de fazer com que outros princípios constitucionais, a exemplo do direito de liberdade e da dignidade humana, tenham aplicação mais efetiva.

Ademais, a função social da propriedade também está relacionada com a concretização do direito de moradia previsto na Constituição, do acesso à terra urbana e rural, bem como do direito ao trabalho.

Dessarte, no ordenamento jurídico brasileiro o conteúdo valorativo da função social da propriedade deve ser auferido à luz dos princípios, objetivos e fundamentos da República, presentes no Título I da Constituição de 1988, com destaque para a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades sociais e regionais.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho buscou-se uma análise doutrinária e jurisprudencial do contexto atual referente à responsabilidade civil na propriedade rural. Sendo assim, concluiu-se que não apenas o proprietário é o responsável, mas também, em situações determinadas, o detentor e o Estado.

Outrossim, fez-se uma análise da função socioambiental da propriedade, relacionando-a com a tripartição da responsabilidade ambiental.

No segundo tópico, propôs-se um estudo sobre a função social da terra em relação com outros princípios, concluindo-se que os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da erradicação da pobreza são essenciais para definir o conteúdo valorativo da função social da propriedade.

5. REFERÊNCIAS

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BORGES, Antonino B.Moura. Curso Completo de Direito Agrário. 3ºEd. Leme-SP: Edijur, 2009.

BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.

____________. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.

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[1] Graduada em Direito na Universidade Federal da Paraíba, Pós-Graduanda em Processo Civil, Direito Civil e Consumidor pela FESP Faculdades e advogada militante

Como citar e referenciar este artigo:
ALMEIDA, Mayara Rayanne Oliveira de. Responsabilidade civil na propriedade rural e função social da terra. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-agrario/responsabilidade-civil-na-propriedade-rural-e-funcao-social-da-terra/ Acesso em: 19 abr. 2024