Direito Administrativo

Freios e contrapesos na crise do coronavírus

Em Senhor das Moscas, romance clássico do século XX, um grupo de garotos sobrevive a uma queda de avião e cai numa ilha deserta do Oceano Pacífico sem previsão de ser resgatado. Para sobreviver, os meninos constituem regras, elegem líderes e dividem a organização do trabalho. O livro é uma bela alegoria sobre a vida em sociedade e o direito. No entanto, a chegada da fome e a ameaça de um monstro propiciam a ascensão de lideranças autoritárias do grupo, legitimadas em troca de comida e proteção. O direito vai perdendo força em nome da segurança. A alegoria sobre a organização da sociedade continua, mas na forma de como o Estado e seus agentes tendem ao autoritarismo diante de crises provocadas por um inimigo externo.

A ameaça do coronavírus pode não ser muito diferente, se me permitem a comparação. Com a iminência de riscos graves à saúde pública, há uma escalada do uso da força do estado em detrimento das regras jurídicas. Atos de policiais e fiscais em conflito com portarias. Portarias em conflito com decretos. Decretos em conflito com leis. Leis em conflito com a Constituição. A crise do novo coronavírus tem posto o direito de cabeça para baixo. Especialmente o direito público. Segundo pesquisa recente do Datafolha, a maioria da população parece concordar que medidas drásticas precisam ser tomadas pelo governo, de ordem a conter a doença. No entanto, há pouco consenso e pouco tempo para consenso. Resultado: decretos baixados às pressas, agentes públicos cumprindo decretos às pressas. Receita perfeita para abuso de poder administrativo. No entanto, é difícil não entender o lado do gestor público, que deve agir prontamente em situações como a que vivemos.

No Brasil, prefeitos e governadores estão tomando a frente na implementação de importantes medidas contra o alastramento da pandemia. São iniciativas valiosas. É preciso, ainda, garantir que essas medidas sejam aplicadas. Daí a necessidade de a Administração usar do seu poder de polícia para fechar estabelecimentos e determinar a dispersão de grupos. No entanto, pondera-se, não requer muito para entender a preocupação do não gestor, o cidadão atingido pelas medidas do governo, diante da força com que o Estado vem exercendo suas atividades. Afinal de contas, a concentração excessiva de poder tende a gerar abusos de toda a sorte, e isso é especialmente verdadeiro em matéria de poder de polícia, em que os agentes do Estado tomam providências duras com as próprias mãos.

Diante disso, uma pergunta impõe-se: quais são os direitos dos particulares diante das medidas contra o novo coronavírus tomadas pelos governos? A pergunta suscita outra: qual será o papel do Poder Judiciário no controle dessas medidas? Pois é preciso, como se diz, prestar deferência às escolhas do administrador, para que tome decisões importantes em momentos de crise, sem, porém, deixar de garantir os direitos dos cidadãos. Trata-se de uma controvérsia difícil de equacionar, principalmente em tempos de excepcionalidade, onde imperam a insegurança jurídica e as decisões tomadas às pressas.

Para responder às perguntas formuladas, primeiro farei uma breve descrição sobre deferência judicial à Administração Pública e crise do coronavírus, para depois tentar dar contornos mais definidos ao que considero ser a contribuição do Poder Judiciário na proteção de direitos dos particulares neste momento, principalmente o de não sofrerem intervenções indevidas do poder estatal.

Explica-se.

Por deferência, quero dizer que há uma necessidade de tribunais adotarem uma postura de autocontenção na revisão do mérito de decisões da Administração Pública. Juízes devem prestar deferências às escolhas dos gestores públicos neste momento de crise, por duas razões. A primeira é intuitiva. Diz respeito à expertise técnica. Gestores públicos estão em melhor posição do que juízes para tomar decisões relevantes sobre saúde pública e contenção de emergências. Ainda que eventualmente falhem, gestores tendem a ter uma visão do todo e a serem amparados por técnicos especializados, ao passo que juízes estão mais acostumados a lidar com um número limitado de informações disponíveis, restritas aos autos e à expertise típica do direito.

Esclareça-se o argumento, para todos os efeitos. Não é que juízes sejam atores despreparados. Longe disso. Inclusive defendo neste artigo o papel importante que irão cumprir neste momento. O ponto é outro. O ponto é que instituições judiciais não são desenhadas para reagir a uma crise sanitária, fenômeno que demanda discernimento técnico e visão sobre o conjunto de recursos à disposição da Administração Pública.

Também, e talvez isso seja ainda mais importante, demanda ter clareza sobre quais recursos não estão à disposição do Poder Público, porque decisões precisarão ser tomadas em termos de alocação de recursos finitos. O que nos leva a um segundo ponto. Instituições judiciais não detêm credenciais político-democráticas para tomar decisões dessa natureza. Se a política é uma forma de disputa pela alocação de recursos em determinada sociedade democrática, é certo que a decisão sobre a destinação orçamentária do erário público em cenários de crise é uma decisão essencialmente política. Cabe aos agentes eleitos. Ainda mais em contexto de crise, onde o governo precisa se desdobrar para dar conta da demanda de saúde pública imposta pelo novo coronavírus.

Em momentos como esse, alguém precisará tomar a decisão de tirar dinheiro de determinada área para aplicar no combate à pandemia. É melhor que esse alguém seja controlável em termos de responsabilização político-democrática. Dizendo com anglicismos, é melhor que esse ator padeça de accountability, como forma de assegurar minimamente que suas decisões não sejam irrefletidas, que sofra algum tipo de pressão popular.

Em resumo, a crise que estamos vivenciando requer a tomada de decisões certas e rápidas por parte da Administração Pública e isto se garante, entre outras medidas, através de um Poder Judiciário deferente, que reconheça que o gestor público é a figura competente para lidar com problemas de saúde pública.

No entanto, a concessão de maior poder à Administração Pública é uma via de duas mãos, uma espécie de trade off. Se de um lado assegura maior eficiência no combate ao coronavírus, de outro amplia a margem de abuso de poder público. E quando se adiciona o binômio emergência-deferência na direção da crise, não significa dizer que juízes devem deixar de rever e punir atos abusivos. Ao contrário. O papel dos juízes é justamente garantir que do discurso da emergência não brotem medidas autoritárias contra os particulares.

Considere o seguinte exemplo, vivenciado por um colega. Em 17/03/2020, o Estado de Santa Catarina editou o Decreto n. 515/2020, que instituiu uma série de restrições à circulação de pessoas e atividades econômicas. O decreto determinou que atividades não essenciais estariam suspensas, como shopping centers, academias, entre outros. Além disso, previu que a indústria alimentícia deveria continuar operando, ainda que com pessoal reduzido.

Ato contínuo, um oficial da vigilância sanitária bate à porta de uma padaria, determinando o seu fechamento. O decreto não prevê essa medida contra padarias, mas o oficial entendeu que a medida era necessária, fazendo uma interpretação abusiva da norma, ao seu próprio sabor. A padaria fechou única e exclusivamente por conta de um agente, causando prejuízo significativo ao dono do estabelecimento. Por sorte, seis dias depois o Estado de Santa Catarina baixou um novo decreto, deixando expresso que padarias não deveriam ser fechadas (Decreto n. 525/2020).

É um exemplo simples, mas que ilustra o ponto. O atual cenário, de fortalecimento do Estado, gera margem de atos abusivos. Agentes públicos devem cumprir à risca as medidas de fechamento de comércios e afins, sob pena de violar direitos básicos das pessoas físicas e jurídicas. Diante de atos como esse, o Poder Judiciário deve intervir para assegurar esses direitos e conter eventuais arbitrariedades. Isto não é nenhuma novidade. Estou apenas falando da separação de poderes. Juízes devem realizar o sistema de freios e contrapesos e assegurar que as medidas baixadas pela Administração Pública – que, repita-se, são necessárias – não desbordem em voluntarismos desproporcionais ou fora de forma contra os particulares.

Vejo-me aqui obrigado a flertar com um argumento pragmático. Como tem sido anunciado, a crise do coronavírus provavelmente terá um efeito devastador sobre a economia, principalmente em virtude do impacto das medidas de quarentena e isolamento social sobre a indústria e o comércio. Não se sabe ao certo sequer a dimensão do estrago. Diante disso, é extremamente importante que o Poder Judiciário aja para coibir os excessos e os abusos eventualmente veiculados nas medidas baixadas pela Administração Pública, ou na aplicação dessas medidas por meio do poder de polícia estatal. Se é verdade que as medidas agravarão a crise econômica e que os prejuízos são inevitáveis para garantir a incolumidade coletiva, melhor que as instituições judiciais sejam responsáveis por fiscalizar que as determinações estatais sejam aplicadas à risca, sem excessos, sem abusos, como forma de evitar prejuízos desnecessários ao desenvolvimento econômico do País.

Isto significa, em particular, que juízes devem controlar a proporcionalidade dos atos dos agentes da Administração Pública. De maneira rigorosa, inclusive. Se preciso, mediante responsabilização do agente. Essa postura incentiva que indústrias e comércios que possam funcionar não sejam fechados de forma arbitrária, sem que haja determinação legal nesse sentido. Os agentes públicos neste momento incumbidos de executar os comandos do Estado precisam entender que, apesar da enorme relevância do serviço que prestam, não estão imunes à responsabilização individual por condutas antijurídicas. Nesse sentido, não há tribunal brasileiro que tenha jurisprudência diferente daquela que sustenta que o poder de polícia do Estado deve agir de forma proporcional e razoável, exercido nos limites da finalidade buscada pela Administração Pública.

Isto também significa que o Poder Judiciário deve fiscalizar se os atos e decretos estão sendo expedidos pela autoridade competente, pois o uso de poder sem autorização legal é uma forma de abuso de poder. Apesar da emergência, é preciso tomar cuidado para que autoridades locais não ajam de forma precipitada, assumindo atribuições que não são suas. Disso resulta também que as autoridades do governo federal devem respeitar as competências legais dos prefeitos e governadores na tomada de decisões, sem pretender impor de cima a baixo ordens ilegais e que por vezes não condizem com a realidade local. Nesse sentido, calha a todos os agentes e juízes observarem a recente decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, na ADI n. 6341/DF, que decidiu que estados e municípios podem restringir a locomoção de pessoas e estabelecer quarentenas. Até o fechamento desse texto, a decisão ainda não tinha sido pautada pela colegiado da Corte e está vigente.

Essas condutas – controle de proporcionalidade e controle formal de competência – ajuda os particulares a coibir abusos do Poder Público, evitando fechamentos desnecessários e prejudiciais à economia do País, ao mesmo tempo que contribui com os gestores públicos na solução da crise em duas dimensões. Em uma porque esse tipo de controle deixa as decisões de gestão pública a cargo das autoridades responsáveis. O juiz apenas controla a forma, deixando que o governador ou o prefeito tome a decisão sobre o mérito. Em duas porque contribui com a execução exata dos comandos dos governantes, evitando-se que agentes públicos “da ponta” da Administração Pública distorçam a finalidade das normas concebidas pelos governadores e prefeitos.

Enfim, costuro tudo o que falei com a conclusão dos pontos mais relevantes. O Poder Judiciário deve respeitar o mérito das decisões dos gestores públicos, contanto que isso não implique permitir (i) que decisões sejam tomadas ao largo da competência dos agentes públicos e (ii) que agentes públicos possam abusar de sua autoridade no cumprimento de tais decisões. As medidas de quarentena já são graves por si só, e isso inclui prejuízos de todas as ordens, principalmente a econômica. O papel do Judiciário é assegurar que essas decisões sejam regulares e cumpridas à risca, sem abusos contra os particulares, de modo a evitar mais prejuízos do que aqueles estritamente necessários ao resguardo da saúde pública.

Isaac Kofi Medeiros é advogado no escritório de advocacia Menezes Niebuhr e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar e referenciar este artigo:
MEDEIROS, Isaac Kofi. Freios e contrapesos na crise do coronavírus. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/freios-e-contrapesos-na-crise-do-coronavirus/ Acesso em: 28 mar. 2024