Direito Administrativo

Os limites e conflitos entre o direito concorrencial e a regulação setorial no mercado de infraestrutura

RIBEIRO, Manoela Barbosa Machado[1]

Resumo: Em regra, o mercado de infraestrutura é caracterizado por possuir um único agente econômico sujeito à regulação estrita por uma agência especializada, o que gera dúvidas quanto à existência de espaço para a intervenção das autoridades de defesa da concorrência. De maneira geral, inexiste concorrência efetiva no referido mercado, cuja relevância para a vida em sociedade faz com que suas atividades sejam caracterizadas como serviços públicos e estejam subordinadas a um regime de monopólio estatal, excludente da liberdade de iniciativa. Em razão disso, há uma forte regulação pelo Estado, inclusive no que tange às variáveis-chave responsáveis por caracterizar uma efetiva concorrência, tais como preço, entrada de novos agentes, padrões mínimos de qualidade, metas de universalização e obrigação de continuidade. Neste contexto, trata-se de mercado cuja intensa regulação torna questionável a sua submissão aos ditames do direito concorrencial e à competência do órgão de defesa da concorrência. Se o referido mercado é um monopólio natural porque decorre da melhor técnica aplicável, não é defensável o entendimento de que este deve restar submetido à jurisdição das autoridades de defesa da concorrência, cuja função principal é combater os abusos do poder econômico que pressupõe a pluralidade de agentes econômicos.

Palavras-chave: Infraestrutura; Direito Concorrencial; Regulação Setorial; Serviço Público; Licitação.

1. INTRODUÇÃO

A defesa da concorrência passou a surgir no Brasil como algo factível em um passado recente, pois diversos eram os fatores capazes de dificultar ou impedir a existência de uma efetiva concorrência no mercado interno e, consequentemente, a necessidade de realização do controle concorrencial, dentre eles destacam-se a existência de uma economia fechada à concorrência estrangeira e com grande intervenção estatal, inclusive no que se refere ao controle dos preços praticados no mercado, inflação elevada, entre outros.

Com a mudança do cenário econômico e dos fatores inibidores do desenvolvimento da concorrência, o que ocorreu a partir dos anos noventa, o direito concorrencial ganhou corpo e passou a ser praticado com veemência no ordenamento brasileiro. Neste momento, houve uma mudança substancial no comportamento do Estado em relação à economia, abrindo espaço para que o direito concorrencial ganhasse importância como mecanismo de defesa contra os abusos do poder econômico.

Durante a década de noventa, com o advento de planos econômicos como o Programa Nacional de Desestatização, iniciou-se um lento processo de abertura do país, com incentivo ao investimento privado, inclusive no setor de serviços públicos, e viabilização de importações, com isso, os órgãos brasileiros de defesa da concorrência ganharam relevância, paralelamente à edição de marcos regulatórios para os setores de infraestrutura que igualmente tiveram na promoção da concorrência um de seus pilares.

Assim, no bojo desta mudança de postura do Estado no trato da economia, diversos regimes de regulação setorial foram criados ou revistos, como uma alternativa aos monopólios públicos, permitindo a criação de concorrência em mercados onde antes esta era impossível. Em razão disso, surge a chamada “regulação concorrencial”, que passa a intervir no direito concorrencial em uma relação de complementariedade e, às vezes, conflito.

O complexo relacionamento entre o direito concorrencial e a regulação setorial, contudo, decorre de um conflito subjacente e muito mais amplo, qual seja, a escolha entre a segurança decorrente da existência de um sistema de defesa da concorrência uniforme ou a opção por atribuir ao órgão especializado, com melhor capacitação técnica, o poder de decidir a respeito da concorrência sob o enfoque da especificidade e tecnicidade. Desta discussão decorre a possibilidade de surgirem conflitos de competência, positivos ou negativos.

Especificamente no que se refere ao setor de infraestrutura, há que se consignar que nestes mercados geralmente há um único agente econômico, estando este sujeito à regulação estrita por uma agência especializada, restando, portanto, dúvidas quanto à existência de espaço para a intervenção das autoridades de defesa da concorrência.

Neste setor, caracterizado pela ocorrência da falha de mercado denominada “monopólio natural”[2], os custos para sua implementação e manutenção são muito elevados relativamente à demanda, de forma que, em regra, inexiste concorrência efetiva. Dada a presença dessa falha de mercado, nesse setor da economia (portos, rodovias, metrôs, ferrovias, dentre outros) costuma existir uma forte regulação pelo Estado, inclusive no que tange às variáveis-chave responsáveis por caracterizar uma efetiva concorrência, tais como preço.

Em mercados caracterizados como monopólio natural, a construção da infraestrutura necessária à introdução de competição mostra-se economicamente ineficiente, pois os custos envolvidos inviabilizam o ingresso de outros concorrentes, de forma que, para a atrair os investimentos privados necessários e garantir a efetiva prestação dos serviços a preços acessíveis, faz-se necessário concentrar a exploração da atividade em um único agente econômico.

Ademais, em razão da relevância deste setor para a vida em sociedade, cuja manutenção e continuidade são indispensáveis para a convivência pacífica, é comum que suas atividades sejam caracterizadas como serviços públicos e estejam subordinadas a um regime de monopólio estatal, excludente da liberdade de iniciativa.

Com o surgimento da Lei nº 12.529/11 o conflito entre a defesa da concorrência e a regulação setorial ganhou força no ordenamento jurídico brasileiro, pois tal legislação trouxe, no parágrafo único do artigo 90, uma nova modalidade de imunidade antitruste, afastando da competência do CADE o controle dos contratos associativos, consórcios ou joint ventures quando destinados às licitações promovidas pela Administração Pública direta e indireta e aos contratos delas decorrentes, sem, contudo, definir os limites e a amplitude da sua aplicação.

Nesse contexto, o presente texto se volta a discutir a efetiva existência de livre concorrência no mercado de infraestrutura, considerando especificamente a natureza das suas atividades, definidas, em regra, como serviços públicos[3] sujeitos à concessão ou permissão. Como consequência, busca-se avaliar a necessidade de realização do controle concorrencial no referido setor, bem como a amplitude da imunidade antitruste trazida pela Lei n° 12.529/11, tendo como pano de fundo a relação de complementariedade e contraposição existente entre o direito regulatório e o sistema de defesa da concorrência.

O relacionamento entre os órgãos reguladores e o sistema de defesa da concorrência é, por si só, questão de relevante importância, especialmente no cenário econômico atual em que o Estado adota uma postura de privatização e liberalização, com o consequente incremento da atuação privada na prestação de serviços públicos. Em economias de mercado mais maduras que o Brasil, regulação setorial e defesa da concorrência são discussões antigas, mas não necessariamente bem resolvidas. O ordenamento jurídico brasileiro tem a oportunidade de inovar, aprendendo com a experiência de outros países e evitando os erros já conhecidos.

2. A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO REGULATÓRIO E AS COMPETÊNCIAS ANTITRUSTE

O conceito de “falhas de mercado”, amplamente explorado pela doutrina, é o que melhor define o ponto de congruência entre o direito concorrencial e a regulação. Isso significa dizer que ambos representam formas de intervenção estatal visando à correção dos problemas gerados pela atuação privada dos agentes econômicos em determinado setor da economia.

A regulação atua restringindo ou substituindo a escolha dos agentes econômicos em torno de determinadas variáveis que, por uma decisão estatal, passam a ser limitadas em seu âmbito de liberdade. Abrange “normas específicas a determinados setores da economia, que impõem escolhas e fazem restrições a priori, além de instrumentalizarem a realização de certos resultados predeterminados”[4].

Nesse sentido, se de um lado há uma tendência de utilização da regulação como instrumento de criação e estímulo das condições de mercado onde a concorrência é possível, por outro lado a intervenção reguladora, em certos setores como no de infraestrutura, não possui o condão de afastar os abusos decorrentes da concentração do poder econômico nas mãos de determinados agentes[5], afinal, nestes mercados geralmente há um único agente econômico explorando a referida atividade em razão da necessidade de altos investimentos para a implementação e manutenção da estrutura necessária à sua prestação.

Este contexto configura o nicho e o limite de atuação do direito concorrencial quando aplicado aos mercados regulados, voltando-se a disciplinar o exercício das liberdades dos agentes quando o poder econômico pode ser exercido sem limites ou restrições. A aplicação do conjunto normativo que compõe o chamado direito concorrencial não visa restringir as escolhas ou alcançar resultados predeterminados, seu principal objetivo consiste no combate aos abusos no exercício do poder econômico.

Assim, se o direito concorrencial visa combater os abusos do poder econômico decorrentes do exercício da liberdade de decisão que a regulação busca suprimir ou substituir por uma determinação estatal, a atuação do direito concorrencial somente é possível quando existe espaço para que os agentes econômicos operem com capacidade de autodeterminação. Por outro lado, quando a regulação existe retirando o poder decisório dos agentes econômicos de maneira a substituí-lo por uma atuação pública, como geralmente ocorre no setor de infraestrutura, não há espaço para a configuração de abusos, o que, por consequência, deveria afastar a aplicação do direito concorrencial e a competência dos órgãos de defesa da concorrência.

Dessa forma, como regra, cabe a cada agência orientar e regular a concorrência no mercado sob sua ingerência, pois esta é capaz de avaliar o mercado regulado de forma ampla considerando o melhor para a sociedade. As agências são responsáveis por buscar a maximização do bem-estar social, o que implica no acesso da população a bens e serviços, com preços módicos e mantendo a qualidade, ou seja, as agências atuam como um braço do Estado na definição de fatores essenciais para a concorrência, retirando do setor privado a liberdade na sua determinação.

Por outro lado, aos órgãos antitruste é defeso interferir neste planejamento, pois tais órgãos desconhecem as estratégias envolvidas e não possuem o conhecimento técnico especifico do setor, o qual é necessário para a tomada de decisão de forma genérica, afinal, o sistema de defesa da concorrência está mais direcionado à repressão de abusos no caso concreto, afastando-se das decisões de caráter geral[6].

Portanto, a competência para tomar decisões de caráter geral, definir normas gerais aplicáveis a todo o setor, deve ser do órgão regulador setorial, não cabendo ao CADE interferir, na prática, na atuação regulatória. A atuação do CADE em mercados submetidos à regulação deve ser pontual e específica para reprimir os abusos do poder econômico onde e quando existir espaço para que os agentes econômicos operem com liberdade de decisão e capacidade de autodeterminação.

Nesse sentido, é questionável o papel do direito concorrencial nos mercados sujeitos à regulação específica, especialmente nos setores de infraestrutura e serviços públicos concedidos onde a liberdade de decisão do agente privado é bastante limitada pela atuação Estatal. Afinal, se o referido mercado é um monopólio natural porque decorre da melhor técnica aplicável, merece questionamento a necessidade de submetê-lo à jurisdição das autoridades de defesa da concorrência, cuja função principal é combater os abusos do poder econômico que tem como pressuposto a pluralidade dos agentes econômicos.

2.1 A aplicação do direito concorrencial nos mercados regulados

A avaliação da aplicação do direito concorrencial aos mercados regulados passa por uma necessária análise da divisão de competências entre os órgãos reguladores e concorrenciais.

A doutrina defende a existência de quatro possibilidades de divisão de competências entre regulação e concorrência. A primeira delas seria a isenção antitruste, segundo a qual o setor é regido unicamente pelas agências reguladoras, que concentram em si todas as competências, inclusive aquelas que envolvem matéria concorrencial.  A segunda opção consiste na chamada regulação antitruste, onde todas as questões são submetidas à análise dos órgãos que compõem o sistema brasileiro de defesa da concorrência. A terceira possibilidade seria a adoção de competências concorrentes, correspondente ao exercício simultâneo da competência em matéria concorrencial por ambos os órgãos. Por fim, existe a quarta possibilidade, caracterizada pela adoção de competências complementares, esta última bastante simpática à doutrina nacional[7].

Para boa parte dos doutrinadores, a competência complementar entre regulação e concorrência seria a mais adequada à realidade brasileira, pois caberia ao órgão regulador a emissão de normas gerais de natureza técnica e econômica e ao órgão concorrencial a aplicação da lei antitruste, evitando a configuração do abuso do poder econômico.

Contudo, a adoção do sistema de competências complementares, em que pese tenda a reduzir os conflitos de competências entre os órgãos, não os afasta por completo, afinal, a regulação pode adotar características de redução da competição no setor regulado ocupando o espaço que seria preenchido pelo direito concorrencial. Da mesma forma, ao anular o poder decisório dos agentes econômicos, determinando o caráter de algumas relações, também limita a necessidade de discipliná-las por intermédio do direito concorrencial[8].

Nesse sentido, para se entender os limites da aplicação do direito concorrencial aos mercados regulados é necessário antes considerar em que medida a regulação permite que o mercado seja efetivamente competitivo, ou seja, até que ponto a existência da regulação realmente retira a capacidade de decisão e autodeterminação dos agentes envolvidos. A regulação que não alcança determinadas esferas do exercício do poder econômico, assim como a regulação que possui aplicação limitada ou que, na prática, é ineficaz, abre espaço para a incidência do direito concorrencial.

Assim, o simples fato de se tratar de um setor submetido à regulação não afasta, a priori, a competência dos órgãos componentes do sistema de defesa da concorrência. Para que seja possível se falar em imunidade antitruste é necessário que a regulação tenha a clara intenção de substituir a concorrência, bem como é indispensável a realização de um controle ativo quanto ao cumprimento das normas regulatórias emitidas pelo órgão setorial[9].

Este entendimento foi desenvolvido nos Estados Unidos pela chamada State Action Doctrine, segundo a qual dois são os fatores determinantes para afastar a incidência do direito concorrencial em um determinado setor regulado: o primeiro deles se concretiza pela existência de uma política expressa definindo a substituição da competência antitruste pela regulação e o segundo pela postura ativa do órgão regulador no sentido de fiscalizar o cumprimento das obrigações impostas pela regulamentação.

A State Action Doctrine foi utilizada pelo CADE na tentativa de criar um sistema e definir critérios quando da aplicação do direito concorrencial em mercados sujeitos à regulação. Nesse sentido é o voto manifestado pelo Conselheiro Marcelo Calliari em processo administrativo que discutiu a formação de cartel e aplicação de preços abusivos nos transportes coletivos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte[10].

Outra teoria desenvolvida pelo direito americano que traduz de alguma forma a relação entre o direito concorrencial e o regulatório é a chamada Teoria do Poder Amplo (Pervasice Power Doctrine). Visando criar critérios para afastar possíveis conflitos de competência, a Teoria do Poder Amplo avalia a competência das autoridades concorrenciais, afastando-a sempre que a lei atribuir ao órgão regulador setorial poderes tão extensos e profundos que se torna forçoso reconhecer que a própria autoridade regulatória possui atribuição para aplicar as normas em matéria de defesa da concorrência[11].

Dessa forma, essa relação de complementariedade entre regulação e concorrência inevitavelmente enseja conflitos, sendo possível vislumbrar situações em que a regulação irá afastar a concorrência com o objetivo de tutelar outros fins dentro da política econômica de determinado setor específico. 

A aplicação do direito concorrencial aos mercados sujeitos ao controle regulatório é determinada a partir da verificação dos limites, tanto em extensão quanto em profundidade, da regulação aplicável, ou seja, é necessário que a regulação existente efetivamente tenha por objeto regular o exercício do poder econômico de forma ampla e completa, substituindo a competência antitruste e afastando o poder decisório e incondicionado dos agentes econômicos. Ademais, faz-se imperioso a postura ativa do órgão regulador no sentido de tornar eficaz a política regulatória.

2.2 O controle concorrencial no setor de infraestrutura

Como afirmado em linhas anteriores, o setor de infraestrutura, em regra, se caracteriza por constituir um monopólio natural, o qual está sujeito a uma abrangente regulação impositiva (e substitutiva do mercado) desenvolvida pelo Estado, muitas vezes definidora de variáveis fundamentais à existência de concorrência, como preço, qualidade, continuidade e quantidade de empresas admitidas no mercado.

Em mercados caracterizados como monopólio natural, a duplicação da infraestrutura necessária à sua exploração e, consequentemente, à introdução de competição no setor, mostra-se economicamente inviável em razão dos elevados custos envolvidos. Dessa forma, a falta de acesso à infraestrutura necessária à exploração da atividade impede a concorrência.

Ademais, conforme anteriormente afirmado, em razão da relevância deste setor para a vida em sociedade, é comum seus serviços e atividades sejam caracterizados como serviços públicos, de onde decorre um regime de monopólio estatal, excludente da liberdade de iniciativa, exigindo o legislador que essas atividades estejam delegadas ao setor privado apenas em regime de permissão ou concessão.

O conceito de serviço público no direito brasileiro tem sido objeto de grande discussão entre aqueles que adotam uma noção formal para sua acepção e aqueles que defendem o conteúdo material da definição de serviço público. De qualquer forma, não se pode abandonar um ponto relevante dentre as características atribuídas ao conceito de serviço público, qual seja o fato de que a Constituição, ao reservar a prestação e exploração do serviço público para o Estado, exclui a incidência de dois princípios constitucionais: a livre iniciativa e a livre concorrência[12].

Nesse sentido, cabe ao Estado optar pela melhor forma de exploração do serviço público, sendo possível a exploração direta, inclusive por intermédio de uma empresa estatal, ou mediante delegação ao setor privado, neste último caso utilizando-se dos instrumentos jurídicos da concessão ou permissão. De qualquer forma, inexiste uma obrigação constitucional de implementar a concorrência nos referidos mercados, ou seja, trata-se de decisão discricionária do administrador público quando e como realizar a exploração dos serviços públicos[13].

Assim, na maioria das vezes, a exploração do serviço público é incompatível com a ideia de livre concorrência, pois ao submeter tais atividades à exploração exclusiva do Estado o legislador as sujeitou a um profundo nível de ingerência, restando como obrigação do Estado o minucioso planejamento da atividade econômica mesmo quando da exploração do serviço pela iniciativa privada[14].

A decisão de submeter determinada atividade a uma regulação tão específica e profunda, capaz de afastar as forças do mercado, decorre de uma decisão do legislador que pode se fundar em duas hipóteses. A mais comum delas decorre do objetivo de redistribuição, ou seja, o legislador entende que determinado setor é tão relevante para a sociedade que não pode ser deixado ao governo das forças de mercado, cabendo ao Estado intervir e regular o referido setor garantindo uma maior proteção aos usuários. Nesse caso, a intenção do Estado é substituir e não complementar a atividade econômica.[15]

A segunda hipótese pode ser visualizada nos casos das atividades que, em que pese não possam ser conceituadas como serviço público, são de interesse público e levam a atribuição do poder de polícia a determinado órgão da administração pública que não aquele a quem se atribui a competência para combater os ilícitos concorrenciais. Nesses casos é imperiosa a definição de critérios para a atuação conjunta do órgão responsável pelo exercício do poder de polícia e daquele responsável pela aplicação das normas concorrenciais, pois a ação do Estado nestes setores não é direta, ou seja, o Estado não exerce diretamente a atividade ou determina as características essenciais do seu exercício pelos particulares[16].

O objetivo redistributivo é comum no setor de infraestrutura, pois a sua relevância para a sociedade requer uma maior atuação do Estado na defesa dos usuários exigindo o legislador que essas atividades estejam submetidas a algum controle de preços, de entrada de novos agentes, de padrões mínimos de qualidade do serviço e metas de universalização, motivo pelo qual os serviços característicos do setor de infraestrutura são, em regra e em uma análise baseada na experiência, incluídos no conceito de serviço público.

As atividades classificadas como serviço público possuem uma regulação tão ampla e profunda que são incompatíveis com a sua submissão aos ditames do direito concorrencial, afinal, é reservada ao Estado a definição de todas as variáveis essenciais ao conceito de mercado.

Ademais, mesmo quando delegadas ao setor privado, as atividades dos serviços públicos geralmente são exercidas em monopólio e submetidas à fiscalização específica do órgão concedente ou permitente, sofrendo, portanto, ingerência regulamentar de tamanha profundidade e extensão que é incompatível com a aplicação a estas atividades do direito concorrencial.

Cumpre esclarecer, porém, que não é o mero conceito de serviço público, seja qual for o critério adotado para a sua definição, que determina a não aplicação do direito concorrencial a determinado setor regulado, mas sim, a profundidade e extensão dos poderes regulatórios conferidos aos órgãos permitentes e concedentes.

Em razão da própria discussão doutrinária existente a respeito do conceito de serviço público, não pode este ser o critério capaz de definir a aplicação dos princípios concorrenciais a determinado setor; é necessário que a lei outorgue ao Estado poderes para substituir o mercado nas suas decisões essenciais, bem como imponha a sua efetiva fiscalização, criando diretamente a utilidade pública e retirando do agente privado o poder de se autodeterminar[17].

A capacidade de determinação das variáveis de mercado é completamente excluída do âmbito de decisão do concessionário de serviço público, pois cabe à Administração Pública definir as quantidades, preços, qualidade do serviço, bem como tem esta o dever de fiscalizar o cumprimento do quanto determinado no contrato de concessão[18].

Nesse sentido é o entendimento do CADE, proferido no voto do Conselheiro Mércio Felsky, ao se pronunciar sobre um conflito de competências no mercado de gás natural, segundo o qual os serviços concedidos de acordo com as regras estabelecidas pelo poder concedente estão sujeitos à avaliação da conveniência e oportunidade deste e da agência reguladora criada para sua fiscalização[19].

O STJ também manifestou entendimento que permite inferir que, nas hipóteses de a regulação setorial impor, de maneira expressa, condições que resultem na supressão da liberdade de concorrência, não há que se falar no controle repressivo pelo órgão responsável pelo controle concorrencial[20]. Vejamos:

ADMINISTRATIVO E ECONÔMICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANOS DIFUSOS AOS CONSUMIDORES. INFRAÇÕES À ORDEM ECONÔMICA. GLP. DISTRIBUIDORAS. FORMAÇÃO DE CARTEL. NÃO OCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DA STATE ACTION DOCTRINE. ATUAÇÃO DAS DISTRIBUIDORAS IMUNES AO CONTROLE DO ÓRGÃO ANTITRUSTE. ATIVIDADE REGULADA E FISCALIZADA PELO ESTADO. ADVOCACIA DA CONCORRÊNCIA OU EDUCATIVA PARA PROMOÇÃO DE AMBIENTE LIVRE E COMPETITIVO. RECURSOS ESPECIAIS PROVIDOS. 1. O mercado de GLP – gás liquefeito de petróleo – tinha seu preço tabelado pelos órgãos reguladores competentes no período em que se alega a formação de cartel por parte das distribuidoras, o que afasta a possibilidade de punição delas. 2. Aplicação, ao caso, da state action doctrine foi formulada nos EUA para definir os casos em que a regulação estatal afastaria o controle concorrencial feito pelo órgão antitruste, quando presentes determinados requisitos: (i) a regulação estatal deve servir a um fim de política pública; e (ii) o Estado deve efetivamente obrigar determinada conduta e supervisioná-la: lição do Professor CALIXTO SALOMÃO FILHO (Direito Concorrencial: As Estruturas, São Paulo, Malheiros, 2007, pp. 238-240). 3. No caso, não há dúvidas de que se está diante de um mercado regulado, o de distribuição de GLP, que seria imune, portanto, ao controle do órgão antitruste, pois facilmente se verifica que: (i) o CNP aprovou a implantação de mercado de empresas que tinha como objetivo organizar a distribuição do GLP, facilitar a sua fiscalização, evitar a proliferação de revendedores clandestinos e propiciar melhores condições de segurança ao consumidor; e (ii) o Sistema Integrado de Abastecimento era elaborado pelo próprio órgão regulador, sendo mensalmente auditado pelo DNC (Departamento Nacional de Combustíveis). Assim, está claro que a regulação servia a uma política pública, era imposta às empresas reguladas e supervisionadas pelo órgão competente. 4. Nos casos em que é o próprio Estado que excepciona a livre concorrência – como ocorre no caso dos autos, no qual foi imposto um tabelamento de preços às empresas – exsurge a importância de a autoridade antitruste exercer a chamada advocacia da concorrência (competition advocacy) ou educativa. 5. A advocacia da concorrência refere-se às atividades desenvolvidas pela autoridade antitruste relacionadas com a promoção de um ambiente competitivo para atividades econômicas, por meio de mecanismos que não se enquadrem no controle preventivo ou na atuação repressiva, principalmente através de suas relações com outras entidades governamentais e pelo aumento da sensibilização do público para os benefícios da concorrência. 6. Recursos Especiais providos para julgar improcedentes os pedidos formulados na Ação Civil Pública.

Especificamente no que se refere ao setor de infraestrutura e embora concluindo pela necessidade de atuação preventiva (quando da elaboração do edital de licitação) do órgão de defesa da concorrência, o CADE reconheceu que “o setor de transportes terrestres é extremamente regulado, sendo que muitas vezes o preço limite do pedágio é definido previamente a assinatura do contrato de concessão, o que mitiga- em parte- preocupações quanto à utilização abusiva de poder de mercado”.[21]

Em decisão mais recente no mercado de operação portuária, o CADE admitiu se tratar de um mercado que possui uma falha natural que pode ocasionar situações monopolistas, mas que é amplamente regulado por uma agência competente, no caso a ANTAQ. Além disso, apesar de o arrendamento do terminal ter levado à ausência de concorrência no mercado de movimentação de contêineres, o referido órgão de defesa da concorrência entendeu que houve, no momento do arrendamento, a concorrência pelo mercado em questão. Como houve um procedimento licitatório prévio ao arrendamento, que definiu a empresa mais qualificada para operar o terminal, o CADE reconheceu que, o fato de se tratar de um mercado regulado, onde o poder público pode afastar a concorrência se for interessante para determinada política regulatória, não significa que não haja qualquer dimensão de concorrência naquele setor. Mesmo que não haja, no momento, concorrência no mercado, houve concorrência na licitação[22].

Neste contexto, a conclusão pela inaplicabilidade das normas concorrenciais às concessões e permissões de serviços públicos, característicos no setor de infraestrutura, além de decorrer da profundidade da regulação e da imposição de requisitos mínimos de desempenho na prestação da atividade pelo privado, conforme padrões estipulados no contrato de concessão, justifica-se pela aplicação dos princípios de defesa da concorrência ao procedimento licitatório prévio.  A licitação garante a existência de uma concorrência antecedente, exercida sob a coordenação e intervenção da Administração Pública, propiciando a participação do maior número possível de agentes e assegurando a prestação dos serviços licitados pelo menor preço, respeitada a qualificação técnica estabelecida no edital.

Os princípios concorrenciais devem, portanto, nortear a atuação do órgão concedente ou permitente no momento da definição do prazo, condições de qualificação e habilitação e objeto da licitação, reduzindo ao máximo a restrição à concorrência e permitindo o acesso de todos os potenciais entrantes no processo licitatório[23].

Nesse sentido, uma vez que a concorrência característica do setor de infraestrutura é exercida antes da própria prestação da atividade, não há que se falar em abuso do poder econômico, pois além de restarem garantidos aos usuários requisitos mínimos de qualidade na prestação do serviço e o controle das variáveis essenciais dos agentes econômicos, o que inclui o controle das tarifas, inexiste espaço para que os particulares operem com liberdade de decisão e com capacidade de autodeterminação.

De acordo com este entendimento, no âmbito dos serviços públicos em regime de concessão ou permissão a atuação dos órgãos de defesa da concorrência resta afastada, caracterizando uma espécie de imunidade antitruste, pois o arcabouço regulatório e as opções políticas, legitimamente tomadas pelo legislador e autorizadas pela Constituição, visam tutelar outros valores constitucionais e resultam em uma regulação tão profunda e em uma ingerência tão extensa que há uma clara substituição da concorrência pela regulação.     

3. A IMUNIDADE CRIADA PELA LEI Nº 12.529/115 E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Com o advento da edição da Lei n° 12.529/11, a defesa da concorrência no Brasil passou a rever a amplitude da aplicação do direito concorrencial ao mercado de infraestrutura, caracterizado pela prestação de serviços públicos, pois esta trouxe em seu bojo uma imunidade antitruste para contratos associativos destinados à participação em licitações promovidas pela Administração Pública, o que representa a sedimentação do entendimento difundido por parte da doutrina nacional no sentido de que há uma clara substituição da concorrência pela regulação no referido mercado.

O artigo 90[24] da mencionada Lei, ao definir os chamados atos de concentração incluiu no seu conceito os atos de fusão de duas ou mais empresas; aquisição, direta ou indireta, de uma ou mais empresas, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas;  incorporação de uma ou mais empresas por outra ou outras empresas; e celebração, por duas ou mais empresas, de contrato associativo, consórcio ou joint venture.

Entretanto, mesmo se enquadrando em uma das hipóteses acima listadas, as operações praticadas pelas empresas atuantes em um determinado mercado somente serão de notificação obrigatória se puderem ser enquadradas nos critérios de faturamento estabelecidos pela Portaria Interministerial nº 994/2012[25], que impõe a necessidade de estarem presentes, cumulativamente, dois requisitos. O primeiro deles exige que uma das empresas participantes da operação integre grupo econômico que tenha registrado, no Brasil, no último ano fiscal, faturamento bruto superior a setecentos e cinquenta milhões de reais. Já o segundo requer que ao menos uma das outras empresas participantes integre grupo econômico que tenha registrado, no Brasil, no último ano fiscal, faturamento bruto superior a setenta e cinco milhões de reais.

Assim, seguindo o mesmo raciocínio lógico já incorporado na legislação anterior, uma vez realizado um dos atos descritos no artigo 90 da Lei n° 12.529/11 e preenchidos ambos os requisitos impostos pelo artigo 88 da referida norma, cumulado com o disposto na Portaria Interministerial nº 994/2012, não haveria que se vislumbrar outra possibilidade que não a obrigatoriedade de submissão da operação ao CADE.

Contudo, diferentemente da Lei n° 8884/94, o artigo 90 da Lei n° 12.529/11 traz, em seu parágrafo único, uma imunidade antitruste que consolida o entendimento do legislador pátrio a respeito dos limites da ingerência dos órgãos de controle da concorrência em mercados sujeitos ao prévio procedimento licitatório, uma vez que este prevê expressamente que não serão considerados atos de concentração a celebração, por duas ou mais empresas, de contrato associativo, consórcio ou joint venture, quando destinados às licitações promovidas pela Administração Pública direta e indireta, bem como os contratos delas decorrentes[26].

Resta claro, portanto, que deixou de ser obrigatória a notificação ao CADE de consórcios ou associações entre empresas para participação em licitação, mesmo na hipótese deste ser vencedor do certame.

O racional que embasa a desnecessidade de notificação ao CADE decorre de alguns fatores lógicos que caracterizam os mercados objeto de prévia licitação e que não se restringem à operação de constituição do consórcio, empresa ou contrato associativo. O primeiro deles é que este tipo de associação entre empresas tem como único propósito a cooperação para atingir um objetivo específico previsto contratualmente e com prazo determinado, e, portanto, não seria ato capaz de limitar ou prejudicar a livre concorrência, pois a sua própria existência seria questionável neste cenário.

Nas palavras de Marçal Justen Filho, o consórcio consiste em associação temporária de esforços entre duas ou mais sociedades, tendo por objeto determinado empreendimento. O consórcio caracteriza-se pela transitoriedade e uma vez executada a tarefa que motivou a associação, as sociedades desligam-se[27]. Este mesmo racional é aplicado às sociedades de propósito específico, contratos associativos e joint ventures, pois todos são instrumentos caracterizados pela especificidade do objeto e pela transitoriedade da sua existência.

Vale lembrar ainda que, além desse caráter transitório e da especificidade do objeto, a atuação das empresas constituídas para a execução de um contrato com a Administração Pública, especialmente no que se refere ao setor de infraestrutura, está sujeita diversas limitações, tanto do ponto de vista material quanto geográfico, constituindo verdadeiros monopólios naturais para a exploração do serviço e execução do objeto licitado. Em outras palavras, a concessão se dá nos limites do contrato, em caráter de exclusividade, sendo essa uma característica da essência e da finalidade do contrato administrativo decorrente de prévio procedimento licitatório.

Logo, é questionável a própria existência da livre concorrência ou do abuso de poder econômico, tendo em vista que estes mercados se caracterizam pela existência de uma regulação é tão ampla e profunda que é incompatível com a sua submissão aos ditames do direito concorrencial, afinal, é reservada ao Estado a definição das tarifas/preço, qualidade dos serviços e o ingresso de novos agentes no referido setor, bem como tem a Administração o dever de fiscalizar o cumprimento do quanto determinado no contrato administrativo objeto do prévio procedimento licitatório.

Assim, no âmbito dos contratos característicos do setor de infraestrutura a lei outorga ao Estado poderes para substituir o mercado nas suas decisões essenciais e características, retirando do agente privado o poder de se autodeterminar e, consequentemente, de realizar qualquer abuso de poder econômico.

Evidente que o raciocínio aplicável à constituição dos consórcios e sociedades decorrentes de licitação por ser aplicado ao controle, fiscalização e regulação do mercado como um todo, afinal, no setor de infraestrutura as atividades delegadas ao particular estão, em regra, sujeitas ao controle de agências reguladoras especializadas e tecnicamente preparadas para regular o mercado em que atuam nos mais variados temas[28]. Eventuais preocupações com a criação de monopólios ou configuração de abuso de poder restam, portanto, completamente afastadas.

Vale lembrar ainda que os contratos característicos do mercado em questão estão sujeitos ao controle direto do órgão concedente, sendo que os atos administrativos emanados do poder concedente, revestem-se de presunção de legalidade, pelo que é possível pressupor que o ente público ao proferir qualquer decisão tenha analisado todo o ordenamento jurídico, inclusive aspectos concorrenciais.

Nesse sentido é o entendimento do Professor Eros Grau:

“…se tomarmos (i) a Administração como um todo orgânico e (ii) a presunção de legitimidade do ato administrativo, teremos como logicamente inadmissível a modificação de um ato administrativo por outro ente do mesmo nível hierárquico, salvo expressa disposição de lei. Ora, se o agente público está obrigado a considerar a totalidade do ordenamento [=todo o direito] quando pratica o ato administrativo, não se pode conferir legitimidade a um outro órgão do mesmo nível hierárquico para modificá-lo, alegando desrespeito a algum texto normativo. Ao proferir o ato, a Administração interpreta e aplica o direito, todo ele. Essa operação de interpretação / aplicação do direito goza de presunção de legitimidade.”[29]

Outro aspecto a ser considerado é que, mesmo na hipótese de se admitir a intervenção do CADE no mercado de infraestrutura e serviços públicos, esta estaria fortemente limitada, uma vez que, conforme já reconhecido pelo próprio Conselho, a atuação dos órgãos de defesa em momento posterior à licitação é, de fato, sujeita a limites, posto que o referido órgão não possui o controle de todos os fatores que envolvem uma licitação, o que inclui as condições de elaboração do contrato e os requisitos para sua execução, sendo que a sua ingerência nestes aspectos pode, em algumas situações, representar um equívoco do ponto de vista regulatório[30].

Seria possível defender, porém, a consulta ao CADE antes da efetiva ocorrência da licitação, ou seja, quando da sua fase interna, pois caberia ao referido órgão avaliar se estão tutelados os requisitos necessárias para uma efetiva concorrência no momento em que ela realmente existe para os mercados de concessão ou permissão, tal entendimento se coaduna com o disposto no artigo 19 da Lei 12.529/11[31].

A licitação garante a existência de uma concorrência antecedente, exercida sob a coordenação e intervenção da Administração Pública, que deve propiciar a participação do maior número possível de agentes e assegurar a prestação dos serviços licitados pelo menor preço, respeitada a adequada qualificação técnica. Os princípios concorrenciais devem, portanto, nortear a atuação do órgão concedente no momento da definição dos requisitos estabelecidos no edital, reduzindo ao máximo a restrição à concorrência. Nesse sentido, vale transcrever posicionamento do Conselheiro Cleveland Prates Teixeira:          

“ao analisar uma operação que envolve um contrato de concessão de serviço público, a atuação do CADE seria bastante restringida no que tange à apreciação tanto da parte regulamentar como da parte contratual da concessão. (…) o CADE não pode determinar a alteração das cláusulas do contrato de concessão, muito menos a organização dos serviços, que é de competência estadual. Contudo, entendo que o CADE tem uma função primordial como “promotor” da concorrência, identificando os possíveis problemas derivados da regulação e sugerindo as alterações para o bom funcionamento do mercado. É fato que o ideal seria que os órgãos de defesa da concorrência fossem previamente consultados antes mesmo da elaboração dos editais de licitações (…)”[32]

Dessa forma, tendo em vista que a legislação criou o instrumento da licitação como procedimento adequado à tutela da concorrência em mercados de serviços públicos característicos ao setor de infraestrutura, não há que se falar em controle concorrencial após a sua conclusão, pois neste momento inexiste para o privado a capacidade de decisão e de determinar as variáveis comuns à esfera de liberdade das empresas em mercados onde há a livre concorrência. Ou seja, devem os órgãos de controle concorrencial servir de instrumento de consulta aos entes da Administração Pública quando da elaboração do instrumento licitatório, pois este é o instrumento adequado a garantir o melhor preço para o ente contratante, respeitadas as condições técnicas minimamente necessárias e exigidas pelo edital para a execução ou prestação do objeto licitado.

6. CONCLUSÃO

O mercado de infraestrutura é caracterizado por possuir, em regra, único agente econômico sujeito à regulação estrita por uma agência especializada, o que gera dúvidas quanto à existência de espaço para a intervenção das autoridades de defesa da concorrência.

Neste setor, aonde ocorre a falha de mercado denominada monopólio natural, os custos para sua implementação e manutenção são muito elevados relativamente à demanda, de forma que, em regra, inexiste concorrência efetiva. A construção da infraestrutura necessária à introdução de competição mostra-se economicamente ineficiente, pois os custos envolvidos inviabilizam o ingresso de outros concorrentes, de forma que, para a atrair os investimentos privados necessários e garantir a efetiva prestação dos serviços a preços acessíveis, faz-se necessário concentrar a exploração da atividade em um único agente econômico.

Ademais, em razão da relevância deste setor para a vida em sociedade, cuja manutenção e continuidade são indispensáveis para a convivência pacífica, é comum que suas atividades sejam caracterizadas como serviços públicos e estejam subordinadas a um regime de monopólio estatal, excludente da liberdade de iniciativa, sendo a sua delegação à iniciativa privada realizada por intermédio dos institutos da concessão e permissão.

Neste contexto, trata-se de ambiente cuja natureza e profundidade da regulação é incompatível com a sua submissão aos ditames do direito concorrencial e à competência do órgão de defesa da concorrência, o CADE, afinal, é reservado ao Estado a definição de todos os fatores característicos de um mercado sujeito à livre concorrência, inclusive no que tange às variáveis-chave tais como preço, entrada de novos agentes, padrões mínimos de qualidade, metas de universalização e obrigação de continuidade.

Além disso, a concessão de serviços públicos à iniciativa privada é fruto de um prévio procedimento licitatório que visa garantir a existência de uma concorrência antecedente, exercida sob a coordenação e intervenção da Administração Pública, propiciando a participação do maior número possível de agentes e assegurando a prestação dos serviços licitados pelo menor preço, respeitada a qualificação técnica estabelecida no edital, não havendo, portanto, como se falar em abuso do poder econômico, pois além de restarem garantidos aos usuários requisitos mínimos de qualidade na prestação do serviço inexiste espaço para que os particulares operem com liberdade de decisão e com capacidade de autodeterminação.

Se o referido mercado de infraestrutura é um monopólio natural porque a técnica aplicável entende ser esta a estrutura mais adequada, não é defensável o entendimento de que o referido setor deve restar submetido à jurisdição das autoridades de defesa da concorrência, cuja função principal é combater os abusos do poder econômico que tem como pressuposto a pluralidade dos agentes econômicos.

7. REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Competências Antitruste e Regulações Setoriais. [online] Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/312688/DLFE-28573.pdf/CompetenciaAntitruste.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2017.

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo 08000.002605/97-52, Relator: Conselheiro Marcelo Calliari, DOU, 29-01-1999. [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 06 jun. 2017.

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo 08000.021006/97-65, Relator: Conselheiro Mércio Felsky, DOU 26-02-2001. [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 06 jun. 2017.

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo 08012.006504/2005-29, Conselheiro João Paulo de Resende, DOU, 20-10-2015. [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 06 jun. 2017

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.005799/2001-92, Relator: César Vinícius Marques de Carvalho, DOU, 14-08-2009 [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 06 jun. 2017.

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.003712/2009-08, Relator: César Vinícius Marques de Carvalho, DOU, 15-05-2009 [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 04 jun. 2017.

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.005516/2001-11, Relator: Fernando de Oliveira Marques, DOU, 29-07-2004 [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 04 jun. 2017.

BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Regimento Interno, atualizado em 25 de maio de 2016, [online] Disponível em: < http://www.cade.gov.br>. Acesso em: 11 jun. 2017.

BRASIL. Lei n°. 8.884 de 11 de Junho de 1994, Vade Mecum/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva. 3. ed. Atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.

BRASIL. Lei n° 8.987 de 13 de Fevereiro de 1995, Vade Mecum/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva. 16. ed. Atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. Lei n°. 12.529 de 30 de Novembro de 2011, Vade Mecum/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva. 16. ed. Atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. Ministério de Estado da Justiça. Portaria Interministerial nº 994 de 30 de Maio de 2012, [online] Disponível em: <http://www.cade.gov.br/assuntos/normas-e-legislacao/portarias/portaria-994.pdf/view>. Acesso em: 11 jun. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.390.875 – RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe, 19/06/2015. [online] Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=44627674&num_registro=201301933523&data=20150619&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 04 jun. 2017.

FARACO, Alexandre Ditzel. Aplicação das Normas Gerais de Concorrência nos Setores Regulados. in Temas Atuais de Direito da Concorrência, São Paulo: Singular, 2012.

GARCÍA-MORATO, Lucía Lopez e ORTIZ, Gaspar Ariño. La competência en sectores regulados: regulación empresarial y mercado de empresas. 2ª ed. Granada: Comares, 2003.

JUSTEN Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª edição. São Paulo: Dialética.

MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade (ATUAL.); ALEIXO, Délcio Balestero (ATUAL.). Direito administrativo brasileiro. 19ed. Atual. São Paulo: Malheiros, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 19 ed. Revista e atualizada São Paulo: Malheiros, 2005.

MELLO, Oswaldo aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3ª Edição. São Paulo: Malheiros.

OLIVEIRA, Gesner. Concorrência: panorama no Brasil e no mundo. São Paulo: Saraiva.

SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). 2. ed.  São Paulo: Malheiros, 2008.

SUNDFELD, Carlos Ari. O CADE e a Competição nos Serviços Públicos. [online] Disponível em: <  https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd= 1&cad=rja&ved=0CCsQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.unifacs.br%2Frevistajuridica%2Farquivo%2Fedicao_abril2001%2Fconvidados%2F025.CADEGAS.doc&ei=dlhtUrKQEff_4AO6uICACw&u sg=AFQjCNHcEZF81pBrRC54SXeAn6KPU4hybQ>. Acesso em: 09 jun. 2017.

VALDEZ, Oscar Aguilar. El Acto Administrativo Regulatorio, in Acto Administrativo y Reglamento, RAP, Buenos Aires, 2002, p. 453. in ARAGÃO, Alexandre Santos de. Competências Antitruste e Regulações Setoriais. [online] Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/312688/DLFE28573.pdf/CompetenciaAntitruste.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2017.



[1] Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós-Graduada em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas e Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e-mail: manoelabmachado@yahoo.com.br.

[2] Ao tratar do monopólio natural, Gaspar Ariño Ortiz e Lucía García-Morato observam que se trata de uma situação em que “uma só empresa pode produzir o output desejado a custo menor do que qualquer combinação de duas ou mais empresas”. GARCÍA-MORATO, Lucía Lopez e ORTIZ, Gaspar Ariño. La competência en sectores regulados: regulación empresarial y mercado de empresas. 2ª ed. Granada: Comares, 2003, p. 23.

[3] É importante esclarecer que o presente trabalho não tem por objetivo adentrar na discussão do conceito de serviço público, seu conteúdo e/ou sua caracterização. Por conta disso, parte-se do pressuposto de que serviços específicos do setor de infraestrutura, como operação e manutenção de rodovias, ferrovias, aeroportos, metrôs, dentre outros, citados no curso do presente estudo, são serviços públicos, considerando a estrutura e o regime jurídicos adotados no ordenamento jurídico brasileiro, os quais se caracterizam pela prestação direta de tais serviços pelo Estado e/ou por sua delegação por permissão ou concessão. 

[4] FARACO, Alexandre Ditzel. Aplicação das Normas Gerais de Concorrência nos Setores Regulados. in Temas Atuais de Direito da Concorrência, São Paulo: Singular, 2012.p.360.

[5] VALDEZ, Oscar Aguilar. El Acto Administrativo Regulatorio, in Acto Administrativo y Reglamento, RAP, Buenos Aires, 2002, p. 453. in ARAGÃO, Alexandre Santos de. Competências Antitruste e Regulações Setoriais. [online] Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/312688/DLFE-28573.pdf/CompetenciaAntitruste.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2017.

[6] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Competências Antitruste e Regulações Setoriais. [online] Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/312688/DLFE-28573.pdf/CompetenciaAntitruste.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2017.

[7] OLIVEIRA, Gesner. Concorrência: panorama no Brasil e no mundo. São Paulo: Saraiva. p. 68.

[8] FARACO, Alexandre Ditzel. Aplicação das Normas Gerais de Concorrência nos Setores Regulados. in Temas Atuais de Direito da Concorrência, São Paulo: Singular, 2012.p.370.

[9] SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos).2. ed.  São Paulo: Malheiros, 2008. p. 177

[10] CADE, data do julgamento: 20-01-1999, Processo Administrativo 08000.002605/97-52, DOU, 29-01-1999, Rel. Conselheiro Marcelo Calliari. 

[11] SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos).2. ed.  São Paulo: Malheiros, 2008. p. 171-172.

[13] Idem.

[14] Lei n° 8987/95, art. 16 – A outorga de concessão ou permissão não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o art. 5o desta Lei.

[15] SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos).2. ed.  São Paulo: Malheiros, 2008. p. 174.

[16] Ibidem, p. 176.

[17] Ibidem, p. 175.

[18] Lei n° 8987/95, art. 29- Incumbe ao poder concedente: I – regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação; (…)

[19] CADE, data do julgamento: 21-02-2001. Processo Administrativo 08000.021006/97-65, DOU, 26-02-2001, Rel. Conselheiro Mércio Felsky.

[20] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.390.875 – RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe, 19/06/2015. [online] Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=44627674&num_registro=201301933523&data=20150619&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 04 jun. 2017.

[21] Parecer proferido em 22 de julho de 2009, em consulta referente ao Processo Administrativo nº 08012.003712/2009-08. Requerentes: Concessionária Rodovias Do Tietê S.A., Equipav S.A. – Pavimentação, Engenharia e Comércio, Leão & Leão Ltda, Opway Engenharia S.A. Relator: Vinícius Marques de Carvalho.

[22] CADE, data do julgamento: 19-10-2015. Processo Administrativo 08012.006504/2005-29, DOU, 20-10-2015, Rel. Conselheiro João Paulo de Resende.

[23] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Competências Antitruste e Regulações Setoriais. [online] Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/312688/DLFE-28573.pdf/CompetenciaAntitruste.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2017.

[24] Lei n°. 12.529/11, art. 90 –  Para os efeitos do art. 88 desta Lei, realiza-se um ato de concentração quando: 

I – 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; 

II – 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; 

III – 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou 

IV – 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture.  

[25] Portaria Interministerial nº 994/2012, art. 1 – Para os efeitos da submissão obrigatória de atos de concentração a análise do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, conforme previsto no art. 88 da Lei 12.529 de 30 de novembro de 2011, os valores mínimos de faturamento bruto anual ou volume de negócios no país passam a ser de:

I – R$ 750.000.000,00 (setecentos e cinquenta milhões de reais) para a hipótese prevista no inciso I do art. 88, da Lei 12.529, de 2011; e

II – R$ 75.000.000,00 (setenta e cinco milhões de reais) para a hipótese prevista no inciso II do art. 88, da Lei 12.529 de 2011.

[26] Lei n°. 12.529/11, art. 90, Parágrafo único – Não serão considerados atos de concentração, para os efeitos do disposto no art. 88 desta Lei, os descritos no inciso IV do caput, quando destinados às licitações promovidas pela administração pública direta e indireta e aos contratos delas decorrentes.

[27] JUSTEN Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª edição. São Paulo: Dialética.

[28] Apesar disso, é importante dizer que a inaplicabilidade da legislação de defesa da concorrência face à existência de órgão regulador já foi previamente levantada e afastada pelo CADE, em julgados proferidos sob a égide da Lei nº 8.884/94.

[29] Parecer proferido em 27 de setembro de 2002, em consulta referente ao Processo Administrativo nº 08012.005799/2001-92. Requerentes: Leão & Leão Ltda., Opway Engenharia S.A., Equipav S.A. – Pavimentação, Engenharia e Comércio, Concessionária Rodovias do Tietê S.A.Conselheiro Relator: Vinícius Marques de Carvalho.

[30] CADE, data do julgamento: 22-07-2009, Processo Administrativo nº 08012.003712/2009-08, DOU, 14-08-2009, Rel. Conselheiro Vinícius Marques de Carvalho.

[31] Lei n°. 12.529/11, art. 19 – Compete à Secretaria de Acompanhamento Econômico promover a concorrência em órgãos de governo e perante a sociedade cabendo-lhe, especialmente, o seguinte: (…)

[32] CADE, data do julgamento: 14-07-2004, Processo Administrativo nº 08012.005516/2001-11, DOU, 29-07-2004, Fernando de Oliveira Marques.

Como citar e referenciar este artigo:
RIBEIRO, Manoela Barbosa Machado. Os limites e conflitos entre o direito concorrencial e a regulação setorial no mercado de infraestrutura. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/os-limites-e-conflitos-entre-o-direito-concorrencial-e-a-regulacao-setorial-no-mercado-de-infraestrutura/ Acesso em: 29 mar. 2024