Direito Administrativo

A Terceirização da Procuradoria

A Terceirização da Procuradoria

 

 

Fernando Machado da Silva Lima*

 

 

A Proposta.

 

             O Liberal do dia 14 de outubro noticiou que a Deputada Araceli Lemos, líder do PT na Assembléia Legislativa, não concorda com a terceirização da cobrança da dívida ativa do Estado. Segundo ela, “Se for feita a terceirização, o governo estará subestimando a competência da Procuradoria e vai ainda diminuir a receita do Estado, porque terá que pagar honorários advocatícios. Se há necessidade de mais pessoal na Procuradoria, para fazer o serviço, o Executivo deveria realizar concurso público”.

 

              De acordo com a notícia do O Liberal, na mensagem encaminhada ao Legislativo, juntamente com a proposta de lei orçamentária, o governador Almir Gabriel disse que em 2.002 pretende recuperar 9,8% do estoque existente hoje da dívida, que representam R$ 29,5 milhões, “devido às ações a serem implementadas pela Procuradoria-Geral do Estado e pela Secretaria Executiva de Estado de Fazenda (Sefa), que, a partir de alterações na lei, poderá terceirizar a cobrança da dívida, resultando em maior agilidade na recuperação dos créditos”.Isso significa, evidentemente, que o Governador pretende que sejam contratados advogados e escritórios de advocacia, para que possa ser agilizada a cobrança da chamada dívida ativa, ou seja, dos tributos que não foram pagos pelos contribuintes que financiam a máquina estatal, e também a própria Procuradoria do Estado.

 

 

                  A dívida ativa.

 

                 Chama-se dívida ativa o crédito da Fazenda Pública federal, estadual ou municipal, regularmente inscrito, de acordo com os princípios legais, no órgão responsável e pela autoridade  competente, no caso os advogados públicos ou procuradores. De acordo com o art. 2o, caput, da Lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais),

 

        “Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.”

 

                 A inscrição da dívida ativa deverá ser feita após esgotado o prazo final para o pagamento, fixado pela lei, ou  após uma decisão definitiva, em um processo administrativo regular. A Certidão da Dívida Ativa é um documento que goza de presunção  relativa de certeza e liquidez, e servirá de fundamento para o início de um processo de execução fiscal contra o devedor. Evidentemente, diz-se que a presunção de certeza e liquidez é relativa, porque admite prova em contrário. O devedor/executado poderá provar em seus embargos qualquer irregularidade na constituição do crédito tributário e poderá alegar até mesmo a inconstitucionalidade da lei que serviu de supedâneo para o lançamento do tributo.

 

                De acordo com a referida Lei 6.830/80, no § 3º do artigo 2º, a inscrição é o ato de controle administrativo da legalidade, realizado pela autoridade competente, para apurar a liquidez e a certeza do crédito, tributário ou não, da Fazenda Pública. A inscrição da dívida ativa é portanto a última etapa dos procedimentos administrativos necessários à sua cobrança.

 

 

As dúvidas.

 

Essa notícia, de que o Estado pretende terceirizar a cobrança da dívida ativa, não parece ter causado até hoje nenhuma reação, mais de um mês depois, apesar do evidente absurdo.

 

            Será que a Procuradoria do Estado é assim tão ineficiente, para que seja necessária a contratação de advogados particulares?

 

            Essa medida teria o condão de agilizar os procedimentos judiciais?

 

            A Procuradoria do Estado deixaria de ter competência para a cobrança e o controle da dívida ativa?

 

           Como seriam contratados os advogados e escritórios particulares?

 

           Esta última questão é, aliás, da maior importância, porque eu mesmo, desde já, estou muito interessado em ser também contratado.

 

              Mas ainda existem outras dúvidas, todas da maior importância. Por exemplo:

 

Como seria possível o relacionamento dos advogados contratados com os órgãos arrecadadores e fiscalizadores estaduais, especialmente no que se refere às informações protegidas por sigilo fiscal?

 

Como seria feita a verificação da regularidade dos valores depositados em juízo? Pelos advogados contratados?

 

 Quem fiscalizaria as atividades dos advogados contratados?

 

 

 

Como responderiam eles, por eventuais danos ao erário estadual?

 

              Depois dessa proposta, não seria melhor terceirizar também as atividades do próprio Judiciário, para que houvesse maior celeridade na prestação da tutela jurisdicional?

 

              Se a terceirização da atividade jurisdicional resolvesse o problema, a cobrança da dívida ativa do Estado seria mais rápida e eficiente.

 

 

Os impedimentos.

 

             Mas é uma pena que isso seja juridicamente impossível, e que o Governador não possa “…a partir de alterações na lei, terceirizar a cobrança da dívida, … para obter maior agilidade na recuperação dos créditos”, porque a Constituição e as leis estão sempre causando problemas e impedindo que se concretizem as boas intenções dos governantes. Infelizmente, existe sério impedimento, no art. 132 da Constituição Federal, verbis:

 

    “Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. (o grifo é nosso)

 

Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04.06.98)

 

    Em sua redação anterior, dispunha o art. 132:

 

  Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas, organizados em carreira na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, observado o disposto no art. 135.

 

 Interpretando esse dispositivo, o Supremo Tribunal Federal já havia decidido que:

 

             “……Nele contém-se norma que, revestida de eficácia vinculante, cogente para as unidades federadas locais, não permite conferir a terceiros – senão aos próprios Procuradores do Estado e do Distrito Federal, selecionados em concurso público de provas e títulos – o exercício intransferível e indisponível das funções da representação estatal …..”(ADI MC nº 881-1-ES, relator Ministro Celso de Melo, Acórdão , DJ 25.04.1997)

 

    A já referida Lei nº 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública, estabelece em seu “art. 1º – A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.”

 

             Também o Código de Processo Civil impede essa pretensão de terceirizar a cobrança da dívida ativa, quando prescreve que a representação em juízo, ativa e passiva, competirá aos Procuradores (art. 12, I). Seria preciso revogar, também, o art. 198 do Código Tributário Nacional:

 

“Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação, obtida em razão do ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e sobre a natureza e o estado dos seus negócios ou atividades”.

 

             A cobrança da dívida ativa é um serviço público essencial, que não pode ser atribuído ao particular, como também a função legislativa ou a função judicial. As pessoas jurídicas de direito público, no caso as entidades da denominada administração direta, ou seja, União, Estados, Municípios e Distrito Federal, são representadas judicialmente por seus procuradores, que são advogados concursados e que não necessitam de mandato especial para essa representação, bastando a comprovação de sua investidura no cargo de procurador.

 

               Existem ainda inúmeras normas estaduais e municipais que impedem a terceirização das atividades das procuradorias. Apenas para exemplificar, citaremos o art. 187 da Constituição do Estado do Pará, que deverá ser examinado detalhadamente quando tratarmos de nossa Procuradoria Estadual:

 

            “À Procuradoria-Geral do Estado compete a representação judicial e a consultoria jurídica do Estado, inclusive em processos judiciais e administrativos que envolvam matéria de natureza tributária e fundiária, com sua organização e funcionamento sendo dispostos em lei complementar, de iniciativa do Governo”.

 

            Assim, em decorrência dos inúmeros dispositivos constitucionais e legais, de nível federal, estadual e também municipal, que atribuem privativamente às Procuradorias a representação judicial dos entes políticos, é impossível a contratação de advogados particulares para o serviço de cobrança da dívida ativa, seja ela federal, estadual ou municipal.

 

 

Outras tentativas.

 

              Felizmente, a idéia não é nova, nem paraense. A terceirização da cobrança da dívida ativa já foi tentada, sem sucesso, em outros Estados e municípios, e até mesmo no âmbito federal. No Mato Grosso do Sul, a APREMS (Associação dos Procuradores), reagindo contra essa idéia, publicou nota na imprensa daquele Estado, intitulada ‘Terceirização do Crédito Tributário: Desconhecimento ou Oportunismo?”, da qual excertamos o seguinte:

 

                                                                                                               

 

         “Somente os que desconhecem a realidade de todos os processos e as dificuldades de todos os profissionais do direito em obter a prestação jurisdicional é que poderiam encontrar na terceirização da representação judicial do Estado a solução para os problemas estruturais e funcionais históricos que afligem as instituições envolvidas na persecução do crédito tributário”.

 

              Mas é interessante ressaltar que, no Mato Grosso do Sul, a idéia de terceirizar a cobrança da Dívida Ativa partiu da própria Ordem dos Advogados. De acordo com a proposta da Seccional daquele Estado, “seria criado um mecanismo legal para tentar receber pelo menos parte da dívida ativa das empresas inadimplentes, ….através de um acordo negociado entre o governo, a Assembléia Legislativa e a Associação dos Municípios do Mato Grosso do Sul.” Para isso, o Governo do Estado abriria licitação para contratar os advogados que moveriam as ações de cobrança,  e parte do dinheiro arrecadado seria usada para pagar os precatórios dos municípios.

 

             No Mato Grosso do Sul, portanto, a Ordem dos Advogados queria a terceirização, e a Associação dos Procuradores impediu que ela se concretizasse. No Pará, nem a Ordem nem os Procuradores se manifestaram, ao menos publicamente, a respeito dessa pretensão.

 

             Apenas a título de curiosidade, transcrevo notícia da Gazeta de São João Del Rei, obtida na internet:

 

              “Licitação- Para recrutar os responsáveis pela cobrança da dívida, o Damae realizou um processo licitatório, que encerrou na última sexta-feira, 28. (a notícia se refere ao dia 28.09.2001) Os advogados Abderazq Mustafa e Carlos Alberto Nery, que já fazem a cobrança do IPTU, serão os responsáveis pela execução das dívidas.

Segundo Alexandre Palhares, um dos responsáveis pelo processo licitatório no Damae, o edital foi publicado  no dia 18, na sala da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em São João del Rei, mas apenas um escritório de advocacia participou da licitação, a exemplo da cobrança da dívida ativa do IPTU, cujos processos estiveram restritos a escritórios cadastrados como pessoa jurídica.”

 

             Em São Paulo, Kiyoshi Harada, em trabalho intitulado “A Febre da Terceirização”, disse:

 

             “Terceirizar o serviço de cobrança da dívida ativa, além de comprometer a sua eficiência pela cisão da fase administrativa de lançamento do tributo da fase judicial de sua cobrança, implica transformação do serviço público permanente, executado pela Procuradoria Geral do Município, de forma global e uniforme (atividades contínuas de consultoria e de representação em juízo) em um “serviço público” temporário e descontínuo, sob a responsabilidade de um particular. Além disso afronta o art. 87 da LOMSP que comete à PGM, de forma privativa, o serviço de inscrição e cobrança da dívida ativa; contraria o art. 12, II do CPC que prescreve a representação judicial do Município por seu Prefeito ou Procurador. Claro que não há e nem poderia haver opção no Município onde haja o cargo de Procurador em que caberá privativamente ao Procurador a representação judicial, em perfeita harmonia com as hipóteses do inciso anterior. E mais, nos termos do art. 7º e parágrafos do CTN não poder haver delegação na execução de serviço público essencial, como o de cobrança judicial da dívida ativa, que difere da mera função de arrecadar os tributos satisfeitos voluntariamente na rede bancária ou fora dele. Finalmente, restaria afrontado o art. 198 do CTN que circunscreve à Fazenda e a seus funcionários o conhecimento acerca da situação econômica e financeira dos contribuintes, bem como sobre a natureza e o estado de seus negócios, impondo-lhes sigilo sob pena de responsabilidade criminal. Esse artigo parte do pressuposto de que apenas os agentes públicos podem participar desse processo de retirada compulsória da parcela de riqueza dos particulares.”

 

 

              Em relação à esfera federal, a Constituição é também muito clara:

 

            “Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.” (art. 131, § 3o).

 

             Mas apesar disso, surgiram recentemente diversas propostas para a terceirização da cobrança da dívida ativa federal. Aldemário Araújo Castro, Procurador da Fazenda Nacional e Coordenador Geral da Dívida Ativa da União, em trabalho intitulado “A Recuperação de Créditos Públicos não Pagos e a Experiência Recente da PGFN” (na internet, em www.ujgoias.com.br), embora reconhecendo que uma reforma constitucional poderia eliminar os óbices a essa terceirização, não concorda com essas propostas.

 

               Diz ele que a PGFN tem conseguido importantes resultados procurando melhorar as condições logísticas da cobrança, através da implementação de uma série de ações administrativas planejadas e executadas com seriedade e competência. Apesar disso, diz o Autor, é insuficiente o número de procuradores (menos de 300) existentes e alocados para as tarefas relacionadas com a recuperação de créditos, o que resulta em uma média superior a 6.000 processos judiciais para cada Procurador. Também o número de servidores de apoio é nitidamente insuficiente, além de não estarem organizados em carreira própria e especializada para o desempenho das atividades exigidas pelas atribuições da PGFN.

 

              Existem ainda, segundo ele, outras carências de ordem material, tais como: ausência de instalações adequadas em inúmeras unidades, falta de armazéns para bens removidos, níveis orçamentários e fluxos financeiros inapropriados, entre outros. Devemos ressaltar ainda, diz Aldemário Castro, os obstáculos próprios do processo de execução. Nele, o exeqüente se depara, em regra, com um devedor recalcitrante, que não cumpriu, nem pretende cumprir, com suas obrigações pecuniárias. São incontáveis os casos de empresas encerradas irregularmente e de pessoas físicas ou sócios desaparecidos. Por outro lado, o trabalho de localização de bens e direitos dos devedores e co-responsáveis esbarra em toda sorte de limitações, como dificuldades operacionais e sigilos de vários tipos. Neste sentido, uma vigorosa legislação que “desobstruísse” as ações de cobrança seria muito mais eficaz que a pura e simples privatização da cobrança ou cessão dos créditos.

 

              Assim, a experiência recente da PGFN na recuperação de créditos atrasados aponta claramente, segundo Aldemário Castro,

 

 

 

            “para a necessidade do efetivo aparelhamento logístico e normativo dos órgãos públicos responsáveis pela cobrança. Somente a constatação imparcial de ineficiência, a ser feita depois da experimentação das condições adequadas, permitiria, com legitimidade, redesenhar a opção política do constituinte . Por enquanto, experiências como a da PGFN apontam para o acerto da opção institucionalizada e para a absoluta necessidade de dotá-la de meios apropriados para atingir os fins pretendidos.” (grifei)

 

   A nossa Procuradoria.

 

A Constituição do Estado do Pará trata da Procuradoria-Geral do Estado no Capítulo IV do Título V, como uma das “Funções Essenciais à Justiça”, ao lado do Ministério Público, da Advocacia e da Defensoria Pública. O art. 187 dispõe, com a maior clareza possível:

 

  “Art. 187. À Procuradoria Geral do Estado compete a representação judicial e a consultoria jurídica do Estado, inclusive em processos judiciais e administrativos que envolvam matéria tributária e fundiária, com sua organização e funcionamento sendo disposto em lei complementar, de iniciativa do Governador do Estado.” (ver LC 02/85 e LC 24/94)

 

            Ressalte-se que a norma suso transcrita não deixou qualquer dúvida, também, a respeito da absoluta impossibilidade da terceirização da cobrança da dívida ativa, quer judicial, quer administrativamente. Nenhum processo judicial ou administrativo, que envolva matéria de natureza tributária ou fundiária, poderá escapar à competência exclusiva e indelegável, evidentemente, da Procuradoria-Geral do Estado.

 

            Os Procuradores do Estado ingressam na carreira através de concurso público de provas e títulos (§ 2o do art. 187), estão sujeitos a uma série de restrições (§ 3o), e adquirem estabilidade após três anos de efetivo exercício (§ 4o). O Governador do Estado nomeará um dos integrantes da carreira de Procurador para o cargo de Procurador-Geral do Estado (§ 1o).

 

              O nosso ordenamento constitucional determina, portanto, com base nos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, que a Fazenda do Estado será representada, judicialmente, pela Procuradoria Geral do Estado, instituição permanente e indispensável, incumbida do exercício de uma das funções essenciais à Justiça, e cujos membros são nomeados após aprovação em concurso público, sujeitos ainda a um estágio probatório e à permanente atividade correicional. A “Advocacia de Estado” é considerada pela Lei Fundamental como uma instituição essencial à Administração da Justiça, ao regime de legalidade da Administração Pública e ao Estado Democrático de Direito.

 

             A essa instituição, cujas atribuições e responsabilidades estão rigidamente determinadas, para que possa ser exigido o respeito aos princípios que regem a administração pública, é confiada a cobrança da dívida ativa, que agora o Governador deseja entregar aos escritórios particulares de advocacia. Seus integrantes gozam de garantias constitucionais e legais, exatamente para que possam desempenhar corretamente as suas atribuições, que freqüentemente levam ao surgimento de conflitos entre o interesse público e a vontade dos poderosos, que tenham eventualmente outros interesses. Por esse motivo, cabe aos advogados públicos, aos Procuradores do Estado, e a nenhum outro advogado, a enorme responsabilidade da cobrança da dívida ativa do Estado.

 

 

A identificação dos problemas.

 

             A pretensão de atribuir a escritórios particulares a cobrança da dívida ativa é sem dúvida absolutamente inconstitucional. A solução para o problema da arrecadação não está, com certeza, no desrespeito aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. A solução precisa ser encontrada em função da análise dos diversos problemas estruturais e funcionais da Procuradoria e do próprio Poder Judiciário. Esses problemas precisam ser identificados e corrigidos. A respeito, diz Kiyoshi Harada, já citado:

 

               “Não se sabe exatamente o porquê dessa tendência dos governantes de responder às deficiências e às falhas no serviço público com mudanças, modificações e reformas, sem a menor preocupação em analisar as causas dessa deficiência que muitas vezes são notórias, por decorrerem de falta de recursos materiais, prejudicando a eficiente atuação dos servidores públicos. Mas os governantes preferem exercitar a imaginação criadora investindo celeremente no desconhecido, ao invés de investir no que já existe melhorando a infra-estrutura dos órgãos públicos. Essas experiências que resultam no desvirtuamento de serviço público sempre acabam custando muito caro ao cidadão contribuinte”.

 

             A Doutrina tem sido praticamente unânime, na condenação à terceirização da cobrança da dívida ativa. Além dos autores já referidos, essa idéia é também condenada por Sebastião Vilela Staut Jr (Privatização: Terceirização da Advocacia Pública, a Quem Interessa?, in Boletim do Instituto Paulista de Advocacia Pública n.3 – Abril/Junho-1996 – pp.4/5), por Angela Cristina Pelicioli (A Impossibilidade da Terceirização da Cobrança da Dívida Ativa, in Revista de Informação Legislativa nº 142, p. 341-345) e por José Cardoso Dutra Júnior (Ainda sobre a Terceirização da Cobrança da Dívida Ativa dos Estados e do Distrito Federal), que afirma:

 

     “V – A terceirização da cobrança extrajudicial da dívida ativa não é a melhor solução do ponto de vista técnico e financeiro para os Estados e para o Distrito Federal, eis que o incremento da logística já existente na máquina administrativa de cobrança (ou a implantação de setor específico, fora ou dentro das Procuradorias, nos entes federativos dele desprovidos), certamente propiciaria o resultado financeiro almejado (receber o crédito ou preparar o terreno da execução fiscal), e a custos menores que os estimados para parcerias com instituições financeiras e megaempresas de cobrança.”

 

              Também o Procurador da Fazenda Nacional Ricardo Lodi Ribeiro condena a terceirização da cobrança da dívida ativa:

 

                 “Por outro lado, vale lembrar que as experiências de terceirização da cobrança judicial de débitos do governo foram todas extremamente desastrosas. O exemplo mais flagrante nos é dado pelo INSS, em que o credenciamento de advogados só exacerbou o quadro de fraudes e negociata, não tendo trazido qualquer benefício para a Previdência Social. O saldo extremamente negativo dessas experiências demonstra que a terceirização da representação judicial dos entes públicos serve justamente para o afastamento da exigência do concurso público para o exercício das funções públicas e o rápido enriquecimento de advogados próximos aos detentores do poder.

 

               Esse fenômeno é muito simples de ser entendido. A inexistência de vínculo funcional entre o advogado e a União Federal deixa o Estado sem qualquer controle sobre a legalidade dos atos praticados por seus agentes, tornando-o indefeso contra toda a sorte de irregularidades. A terceirização dos serviços dessa natureza envolve a contratação de um profissional que hoje defende a União em uma ação e amanhã litiga contra a União em outra, sem qualquer compromisso com o interesse público. Haveria necessidade de uma estrutura estatal do mesmo tamanho da atual só para fiscalizar a atuação desses profissionais, sem qualquer economia para os cofres públicos. Ao contrário de economia, a adoção da malsinada medida traria gastos muito maiores para o governo, tendo em vista que esse passaria a pagar honorários aos advogados contratados, de acordo com percentual sobre o montante da causa, o que obviamente superaria muitas vezes o que é gasto com o pagamento de salário aos seus procuradores, submetidos à rígida disciplina imposta pela política salarial dos servidores públicos.

 

                 Como se vê, a medida só beneficiaria os grandes escritórios de advocacia, que ganhariam rios de dinheiro à custa do erário, e os sonegadores e fraudadores, que teriam diminuído o controle estatal sobre a cobrança de suas dívidas. São justamente esses segmentos que alimentam a insidiosa campanha pela terceirização da Advocacia de Estado, uma atividade que, pela sua natureza, deve ser exercida pela própria União Federal, uma vez que envolve o controle interno da legalidade da administração, função inerente ao Poder Público, sem qualquer similar na iniciativa privada.” (Terceirização: Um Remédio que Mata, O Estado de São Paulo, 1.997)

 

 

             O primeiro passo deve ser, portanto, em vez da impossível terceirização da cobrança da dívida ativa do Estado, a identificação dos problemas, tanto no âmbito da Procuradoria, como no que se refere, também, ao desempenho do Poder Judiciário. Aliás, antes mesmo da lavratura da Certidão da Dívida Ativa, devem ser analisados os problemas referentes ao desempenho dos diversos órgãos envolvidos na constituição, no controle e na cobrança do crédito tributário.

 

 

           O exemplo do Ministério da Fazenda.

 

             Apenas para exemplificar, no âmbito do Ministério da Fazenda, foi constituído, em 1.995, um Grupo de Trabalho, destinado ao exame das condições de cobrança do crédito tributário, tanto na esfera administrativa como na judicial. O relatório final desse Grupo de Trabalho indicou a necessidade de providências imediatas em relação ao desempenho da Secretaria da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Verificou-se, por exemplo, que existiam, na Secretaria da Receita Federal, milhões de débitos passíveis de inscrição, porque não vinha sendo cumprido o prazo legal para a remessa dos processos à Procuradoria.

 

             O problema da cobrança do crédito tributário é muito antigo, evidentemente. Desde que foram inventados os tributos, os contribuintes têm procurado aperfeiçoar o vasto arsenal destinado a evitar o seu pagamento.

 

             Há exatamente trinta anos, na Coordenação do Sistema de Arrecadação da Secretaria da Receita Federal, em Brasília, na qualidade de Técnico de Tributação, recém concursado, tive a oportunidade de participar da elaboração de um projeto de reformulação do sistema de arrecadação dos tributos federais. Quantos outros projetos já não terão sido elaborados e implementados, de maneira deficiente, ou até mesmo simplesmente abandonados, desde então?

 

              Recentemente foi instituído, por ato do Ministro da Fazenda, o Projeto Integrado de Aperfeiçoamento da Cobrança do Crédito Tributário. Para esse projeto, desenvolvido conjuntamente pela Secretaria da Receita Federal e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, foram estabelecidos os seguintes objetivos básicos:

 

a)      examinar e propor medidas relativas ao aperfeiçoamento dos sistemas operacionais de controle e acompanhamento do lançamento e da cobrança do crédito tributário, incluindo a entrada, o tratamento e as bases de dados, os relatórios gerenciais e a documentação correspondente;

 

      b) examinar e propor medidas relativas ao documentário fiscal utilizado para o cumprimento das obrigações principal e acessórias por parte dos contribuintes ou responsáveis, no sentido de adequá-los aos objetivos do Projeto;

 

      c) examinar e propor medidas relativas aos prazos previstos em lei, especialmente os relativos à cobrança amigável, ao encaminhamento dos débitos para inscrição em Dívida Ativa e à correspondente cobrança judicial;

 

      d) examinar e propor medidas relativas aos procedimentos para assegurar a certeza e liquidez dos débitos, a localização do devedor e a identificação de bens penhoráveis;

 

      e) examinar e propor medidas relativas à revisão da legislação concernente ao processo administrativo fiscal, às penalidades pelo descumprimento da obrigação tributária, ao parcelamento e à eficácia da cobrança do crédito tributário;

 

      f) examinar e propor medidas relativas ao controle dos depósitos judiciais dos tributos e contribuições federais objeto de questionamento judicial, e da imediata conversão desses depósitos em renda, quando, vitoriosa a Fazenda, a sentença transitar em julgado;

 

      g) examinar e propor medidas relativas a outras hipóteses relacionadas aos objetivos do Projeto.

 

 

 

              A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional admitiu, no ano passado, trezentos novos Procuradores, aprovados em concurso público. Esse número será, com certeza, insuficiente, quando se sabe que existem mais de três milhões de contribuintes inscritos na dívida ativa federal.

 

              O Brasil não é recordista apenas em relação ao peso de sua carga tributária, de aproximadamente 35% do PIB, uma das maiores do Mundo, mas também no que pertine à inadimplência e à sonegação, que correspondem, no âmbito tributário, à impunidade característica da esfera penal e político-administrativa, e que são extraordinariamente facilitadas pelo desaparelhamento e pela falta de critérios que caracterizam a atuação dos órgãos fazendários, das Procuradorias e do Poder Judiciário.

 

 

           O exemplo de Santa Catarina.

 

              No Estado de Santa Catarina, no âmbito de recente CPI da Sonegação Fiscal, destinada a examinar as causas da sonegação, as deficiências da administração fiscal e os problemas relacionados com a cobrança da dívida ativa, foram ouvidos membros da Secretaria da Fazenda, da Procuradoria do Estado, do Tribunal de Contas e do Poder Judiciário. Ressalte-se que, em Santa Catarina, existia anteriormente a cobrança da Dívida Ativa através de advogados credenciados, de acordo com o Decreto 7.349/79, e essa terceirização foi extinta com a promulgação da nova Constituição do Estado. Aliás, a CPI constatou a existência de problemas referentes à distribuição das Certidões da Dívida Ativa aos advogados credenciados, sem o controle devido.

 

              A seguir, transcrevo alguns trechos e depoimentos constantes do Relatório daquela CPI:

 

          “O princípio da legalidade é fundamental no estado de direito. Uma notificação que não obedeça todos os requisitos da lei é uma notificação que vamos ajuizar e o Estado acaba perdendo”  (Procurador-Geral do Estado)

 

            “Há casos em que a empresa foi notificada em 1.984, de infração ocorrida em 1.980 que ainda está em curso de cobrança. Tem débito originado há mais de 20 anos que ainda não foi pago e sabe-se lá se vai ser. Há processos judiciais que tem mais de 20 anos no Fórum…” (Procurador-Geral do Estado)

 

          “…essa dívida ativa de certa forma é uma ilusão quando se fala em um bilhão e oitocentos milhões, porque ali estão englobados dívidas prescritas, débitos de empresas falidas ou desaparecidas, empresas que deixaram de existir de fato.” (Procurador-Geral do Estado)

 

              “não entendemos razoável que de um total de 1.6 bilhões de reais inscritos em dívida ativa, sejam cobrados, em média, 2 (dois) milhões de reais por mês. O que pode interessar para o Governo do Estado ter inscrito em dívida ativa um volume considerável e não promover nenhuma gestão para sua cobrança?”. (Secretário da Fazenda)

 

              “….então, na verdade, o que existe, a cobrança é insignificante perto do volume da dívida. E V. Exa. deve reconhecer que também nós temos interesse que a arrecadação aumente”. (Desembargador Francisco Borges)

 

            “Ou seja, a soma de cada mês cobrado no ano de 2.000 correspondeu ao total de apenas 1,56% do estoque de dívida. Na iniciativa privada o índice de cobrança de valores atrasados fica no contexto de 85 a 98% do total. Que diferença!” (Do texto do Relatório da CPI)

 

            “É verdade que a cobrança de dívida ativa não é exemplo de boa execução de serviço público, mas a cobrança de Santa Catarina chega a ser vexatória. No Sul, perde para o Paraná que cobra três vezes mais, e para o Rio Grande do Sul que chega a duas, duas vezes e meia o percentual relativo daqui. Na União, o êxito é da ordem de 4% do seu estoque.” (Do texto do Relatório)

 

             “O que eu posso dizer a V. Exa. é que nós fazemos o possível para defender o Estado. Agora, no que tange ao Judiciário, a morosidade dele é uma característica (…). Eu não quero fazer nenhuma crítica ao Presidente do Tribunal, que é um dos meus diletos amigos, mas acontece que no processo judicial a maior incumbência é do Judiciário” (Procurador-Geral do Estado)

 

           “enquanto esta Procuradora atuava nesta Regional, com a missão impossível de dar conta do número de executivos fiscais existentes na Comarca, só aparecia a inoperância da Procuradoria. Com a vinda de mais dois colegas, pudemos dinamizar o andamento dos processos, com o que a estrutura do Cartório sucumbiu.” (Procuradora Christina Caputo)

 

                “Nunca se procurou investir no Poder Judiciário na perspectiva de que o Poder Judiciário é um Poder que pode dar lucro. Lucro no sentido de que se ele estiver aparelhado efetivamente ele tem condições de arrecadar, e arrecadar bem.” (opinião dos Desembargadores que foram ouvidos pela CPI)

 

                “Além do número de oficiais de justiça ser pequeno, quando se trata de ações de interesse do Estado, trabalham com pouca (ou nenhuma) disposição (…) entendo, portanto, que o Tribunal de Justiça deva ser pressionado a colocar funcionários no Cartório, providenciar juízes auxiliares para a Vara da Fazenda e aumentar o número de oficiais de justiça. Deveria ainda fazer um estreito acompanhamento da atuação desses serventuários, para que sejam afastados aqueles que não atuam com a seriedade e dignidade que o Poder Judiciário deve impor.” (opinião da Procuradoria)

 

            “e eu digo o mesmo, eu tenho uma série de restrições sobre a atuação do Oficial de Justiça, que é a nossa vitrina, é a nossa mão, a longa mão que está lá, e ele não funciona bem, não funciona bem, nós sabemos que ele é muito criticado (…) essa situação, hoje, acho que é muito ruim, quero dizer, ela deslustra a imagem do Poder Judiciário e realmente o serviço é mal prestado.” (Desembargador Francisco Borges)

 

             “Em síntese do depoimento dos senhores Desembargadores, a justificativa do comportamento reprovável do oficial de justiça decorre da falta de pagamento das custas para cumprimento dos mandados de citações e porque, via de regra, a identificação do devedor e seus bens é insuficiente para sua localização. Ademais, advogados privados são mais diligentes neste tipo de ação, pois não só indicam com precisão os bens à penhora, como também antecipam o valor para o oficial de justiça executar o serviço.” (do texto do Relatório)

 

            “pode-se deduzir que o fraco desempenho da cobrança da dívida ativa não decorre só do Judiciário. O próprio Procurador Geral registrou que são cerca de 60.000 ações de execução fiscal em curso sob a responsabilidade de 21 procuradores, ou seja quase 2.900 processos para cada um. Ademais, os salários dos Procuradores são diversos, em razão de ações judiciais em que alguns conseguem isonomia com categorias equivalentes de outros poderes. Percebe-se, por outro lado, que a remuneração principal desses servidores é com base no pró-labore de êxito fiscal, que leva em conta o número de processos protocolados e não necessariamente sua importância ou valor. Logo, um processo de execução de R$ 500,00 tem o mesmo tratamento de um de R$ 1.000.000,00.” (do texto do Relatório)

 

        “ a cobrança da dívida ativa é atribuição privativa do Procurador do Estado, ou seja é terreno demarcado cuja ação só é possível por intermédio da Procuradoria do Estado, de mais ninguém, talvez por isso boa parte tenha um comportamento, uma atitude passiva.” (Procurador-Geral do Estado)

 

        “O Procurador acha que a solução está no reequipamento da Procuradoria, inclusive com locais para depósito de bens, contratação de mais procuradores e que o Judiciário melhore o exercício de sua função de forma a apreciar as ações executivas dentro de prazos razoáveis.” (do texto do Relatório)

 

             “O Judiciário entende que além dos investimentos necessários na contratação de magistrados e no adiantamento das custas para pagar os oficiais de justiça, a PGE poderia ser mais diligente e ágil em sua missão. Ao propor a ação executiva de cobrança, já fazer constar o devedor certo, seus possíveis endereços e os bens que podem ser levados à penhora.” (do texto do Relatório)

 

            “Quando se tem uma execução no cível, o que ocorre? O próprio advogado vai atrás investigar, procura saber onde há possibilidade de encontrar bens para poder penhorar. O Estado não; formula requerimento e esse requerimento nem sempre se tem êxito para ser alcançado.” (Desembargador Francisco Borges)

 

               O Relatório da CPI concluiu que o desempenho da cobrança da dívida ativa deverá produzir melhores resultados se:

 

a)     A Secretaria da Fazenda ou a Procuradoria Geral do Estado criar uma unidade específica para levantamento de bens dos devedores que podem ir à penhora e, assim, já providenciarem a instrução dos respectivos processos de execução fiscal;

 

b)     A Secretaria da Fazenda designar em sua estrutura equipe para elencar os devedores contumazes visando as instruções e articulações para obtenção de cautelar fiscal já no ato de emissão da notificação fiscal;

 

 

c)      A Secretaria de Administração elencar locais que possam servir de depósito dos bens penhorados, ou efetuar convênios com leiloeiros oficiais que, assim, não só fariam o leilão, como ficariam com a guarda dos bens;

 

      d) Considerando que há devedores que pertencem ao Governo Federal, o Executivo propor ao Governo Federal a compensação de tais dívidas com débitos do Estado para com a União;

 

e)      Considerando que há a possibilidade legal de dação em pagamento, a Secretaria da Administração, com fim específico de receber por dação, elencar os bens móveis, imóveis e de consumo de que necessita o Poder Público, indicando o preço máximo pelo qual se dispõe a aceitar a oferta para que as empresas devedoras se habilitem e quitem seus débitos dando em pagamento bens que serão utilizados em benefício da coletividade;

 

       f) A procuradoria estabelecer uma força tarefa e concentrar todas as suas forças na cobrança das 255 empresas elencadas neste relatório, que respondem pela metade da dívida, utilizando-se inclusive da penhora e seqüestro de parte da receita das mesmas;

 

      g) A procuradoria evitar ajuizar ações cujo custo total (inclusive o do judiciário) seja superior ao valor da dívida, não havendo conflito entre esse comportamento e a Lei de Responsabilidade Fiscal, pois seria incoerente afirmar que uma lei que visa a responsabilidade no uso do dinheiro público obrigue a gastar mais cobrando do que a quantia a ser cobrada.

 

 

               Conclusões.

 

              Somente a Procuradoria do Estado pode atuar na cobrança da dívida ativa. A nenhum outro advogado pode ser atribuída essa enorme responsabilidade. Se a nossa Procuradoria do Estado tem sido ineficiente, as causas precisam ser identificadas e corrigidas. Da mesma forma, se o problema estiver no Poder Judiciário ou em qualquer outro órgão estadual.

 

             De maneira geral, pode-se afirmar que os valores da dívida ativa, federal, estadual ou municipal, costumam ser irreais, porque muitos dos débitos não podem ser cobrados, tendo em vista a ocorrência da prescrição, a insolvência dos devedores, ou até mesmo porque se trata de lançamentos efetuados com fundamento em leis inconstitucionais, como é o caso das alíquotas progressivas do IPTU.

 

  A cobrança da dívida ativa é também extremamente dificultada pelas normas legais que permitem ao contribuinte postergar o pagamento do tributo, através das vias administrativas e judiciais, em geral durante mais de dez anos, de maneira que, durante esse período, o seu patrimônio desaparece e a execução é frustrada. Ou então, um “pequeno” detalhe poderá anular todo o processo, por desrespeito ao princípio da ampla defesa e do contraditório.

 

             Mas a Procuradoria, além da representação judicial do Estado, é também responsável pelas atividades de consultoria. O Chefe do Executivo e as demais autoridades devem ser orientadas juridicamente, exatamente pela Procuradoria e, de modo geral, pelos advogados do Poder Público. Devido às dimensões do Poder Executivo e ao grande número de órgãos que o compõem, é indispensável que a Procuradoria esteja permanentemente em contacto com todos esses órgãos, que dependem, evidentemente, de sua orientação jurídica, em relação a todos os planos, projetos e ações governamentais.

 

              Essa orientação é indispensável, para que possam ser evitados determinados erros, que podem resultar em prejuízos patrimoniais para o Estado. Da mesma forma, a correta orientação jurídica servirá também para reduzir o número de conflitos com os administrados e, conseqüentemente, desafogar as instâncias administrativas e o próprio Poder Judiciário. Em outras palavras, se o Governo atuar dentro da lei, diminuirá a quantidade de lides judiciais, diminuirá também o volume de trabalho da Procuradoria e do próprio Ministério Público e reduzirá a quantidade de processos inúteis nas Varas de Execuções Fiscais, melhorando assim o desempenho da cobrança da dívida ativa.

 

             Na minha opinião, a correta orientação jurídica poderia ter evitado até mesmo que o Sr. Governador do Estado levasse à Assembléia Legislativa a proposta de terceirização da cobrança da dívida ativa, ora examinada.

 

             A correta atuação da Procuradoria poderia fazer com que os governantes reconhecessem os direitos do jurisdicionado e do contribuinte, sem que para isso fosse necessária a interferência do Poder Judiciário. Haveria, com isso, uma enorme economia de processos, pareceres, despachos, sentenças e mandados. O Poder Judiciário seria, com certeza, muito mais rápido e eficiente, porque haveria um enorme decréscimo do número de ações judiciais contra o Estado, e do número de execuções fiscais julgadas improcedentes.

 

              Caberia à Procuradoria, na realidade, prevenir a grande maioria dos conflitos, orientar os procedimentos administrativos e assessorar os governantes, na formulação das políticas públicas. Somente a Procuradoria, que deve conhecer todos os dados relacionados com a cobrança da dívida ativa e com as decisões judiciais que envolvem o interesse da Fazenda Pública, poderá orientar corretamente os governantes, para as necessárias alterações na política tributária, nos procedimentos administrativos, e de maneira geral em todos os programas desenvolvidos pelo Estado.

 

              Ressalte-se que o tema é de capital importância, haja vista que, se a cobrança da dívida ativa não funcionar corretamente, a atividade governamental poderá ficar inteiramente comprometida, especialmente quando se sabe que os índices de inadimplência são muito elevados, em decorrência de uma série de fatores, que não podem ser examinados nesta oportunidade. O desafio é enorme, mesmo porque a nossa Procuradoria conta com apenas cinqüenta Procuradores, para executar as dezenas de milhares de devedores da Fazenda Pública junto ao Poder Judiciário, também tradicionalmente desaparelhado e lento.

 

              Para agravar ainda mais o problema, infelizmente, a tradição das nossas Procuradorias tem sido a defesa cega do interesse do Governo, freqüentemente diverso do interesse público. As Procuradorias, tradicionalmente, não costumam reconhecer o direito do jurisdicionado ou do contribuinte. Querem sempre cobrar os tributos de qualquer maneira, alegando “razões de Estado”, mesmo quando sabem que são indevidos, e negam sempre os direitos dos administrados. Costumam ainda recorrer sempre, de forma incabível e protelatória, mesmo sabendo que a decisão definitiva será favorável ao contribuinte. Como exemplo, basta lembrar os milhares de processos envolvendo as pensionistas e o Órgão Previdenciário do Estado do Pará, o IPASEP, ou a cobrança inconstitucional da Taxa de Iluminação Pública e das alíquotas progressivas do IPTU, no Município de Belém. Essa atitude, evidentemente, congestiona o Poder Judiciário e prejudica a cobrança dos créditos legítimos.

 

             As Procuradorias precisam se modernizar e precisam desempenhar suas atribuições com toda a eficiência, mas sempre de forma compatível com o interesse público. Afinal de contas, vivemos em um regime democrático, em um Estado de Direito, e os vencimentos de seus integrantes são pagos pelo próprio povo. E os tributos pagos pelo povo devem ser sempre utilizados, da mesma forma, é claro, no interesse público.

 

              A solução para a cobrança da dívida ativa não é a terceirização. De acordo com o Procurador Ricardo Lodi, já citado,

 

       “Se o Governo pretende uma política séria para a cobrança dos devedores do Erário, é necessário investir na PGFN, realizando concursos periódicos, dotando-a de uma infra-estrutura adequada e de quadro de apoio próprio, e remunerando os seus Procuradores de forma digna, evitando o êxodo para a iniciativa privada. E tudo isso não custará um centavo aos cofres públicos. Basta aplicar os recursos que os contribuintes pagam de honorários advocatícios e encargo legal nessas finalidades, conforme determinado pela lei.”

 

              Privatizar a cobrança da dívida ativa, portanto, mesmo que apenas a cobrança extrajudicial, significaria na realidade um artifício para evitar a realização de concursos públicos e até mesmo o aumento do quadro de Procuradores do Estado, bem como o reaparelhamento da Procuradoria, que necessita de infra-estrutura administrativa adequada, para que possa desempenhar a contento sua importante missão constitucional. Privatizar a cobrança da dívida ativa, como se pretende no Estado do Pará, seria apenas um primeiro passo para a privatização do próprio Estado, e para que os tributos pagos pelo povo pudessem, com toda a facilidade, beneficiar apenas os amigos do Rei.

 

 

* Professor de Direito Constitucional

 

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Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Fernando Machado da Silva. A Terceirização da Procuradoria. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/a-terceirizacao-da-procuradoria/ Acesso em: 19 abr. 2024