Direito Administrativo

(Im)possibilidade de responsabilização administrativa do servidor público por atos praticados na vida privada

Sumário: 1 Introdução; 2 Servidor Público; 3 Processo Administrativo Disciplinar; 4 (Im)Possibilidade de Responsabilização do Servidor Público por atos praticados na vida privada; 5 Conclusão; Referência.

 

RESUMO

Estudo sobre a responsabilização do servidor público quanto aos atos praticados na vida privada. Primeiro, a análise do que vem a ser o servidor público. Adiante, o processo disciplinar. E finalmente, a (im)possibilidade de responsabilização do servidor público por atos praticados na vida privada, explicitando os seus fundamentos e parâmetros para essa (im)possível responsabilização.

PALAVRA-CHAVE: Responsabilização. Vida Privada. Servidor Público

 

1 INTRODUÇÃO

 Com o envolver dos anos o direito administrativo, contou com uma imensa evolução social, causada pelo Estado Democrático de Direito, que, por sua vez, inseriu na matéria administrativa os princípios da ampla defesa, como garantia fundamental do indivíduo submetido a um processo disciplinar.

Ainda assim, verifica-se ma redução de tratamento quanto a esses princípios, acarretando com, isso uma falta de segurança jurídica, inclusive em face das técnicas e o baixo vínculo de que se vale o legislador.

E foi para garantir a segurança jurídica que surgiu o processo administrativo disciplinar que como preceitua o art.148 da Lei 8.112/90 é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido. O presente estudo visa enfrentar a discussão quanto à possibilidade de aplicação do processo administrativo disciplinar por ato praticado na vida particular por Servidor Público.

 

2 SERVIDOR PÚBLICO

Servidor público é a pessoa física que presta serviço à administração pública direta, às autarquias e das fundações públicas de natureza autárquicas, gerando entre as partes um vínculo empregatício ou estatutário. Sem embargo de respeitáveis opiniões em contrario, não consideramos servidores públicos os empregados das entidades privadas da Administração Indireta. Isso porque como bem se observa no art.173 da nossa Carta Magna, estabelece que as empresas públicas e sociedades de economia mista devem sujeitar-se ás regras de direito privado quanto ás obrigações trabalhistas[1].

Para que essa pessoas físicas sejam consideradas servidores públicos é necessário que as mesmas apresentem a profissionalidade, significando que os servidores públicos exercem efetiva profissão quando no desempenho de suas funções públicas. Deve apresentar também a definitividade, ou seja, deverá ter um cunho de permanência. E por fim, a verificação da existência de uma relação jurídica de trabalho[2].

 

3 PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

A relação estatutária admite que, em certas circunstâncias, o servidor público seja responsabilizado perante a Administração. Obviamente, essa responsabilização só pode ser reconhecida se ocorrer uma situação fática que a lei tenha erigido como suporte da responsabilidade. É sob esse aspecto que a responsabilidade do servidor perante a Administração pode ser civil, penal e administrativa[3].

Entretanto, cabe salientar um aspecto que merece importante análise. A responsabilidade se origina de uma conduta ilícita ou da ocorrência de determinada situação fática prevista em lei e se caracteriza pela natureza do campo jurídico em que se consuma[4].

Dito isso, cabe analisarmos especificamente e de maneira sucinta o processo administrativo disciplinar onde será investigado o descumprimento de um dos deveres do servidor público. Ou seja, é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido. Como se retira do art.148 da Lei 8112/90.

 Dá-se a instauração do processo administrativo disciplinar pela publicação da portaria de designação da comissão encarregada de proceder aos trabalhos de investigação e apresentar um relatório final conclusivo sobre a procedência ou não das acusações levantadas, o qual será acatado pela autoridade julgadora, salvo se contrario às provas dos autos[5].

A comissão investigadora será composta de três servidores estáveis designados pela autoridade competente. Esta indicará, dentre os três, o presidente da comissão, o qual deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível de escolaridade igual ou superior ao do acusado como se demonstra no art.149 da Lei 8112/90. O prazo para a conclusão do processo administrativo não excederá 60 dias, contados da data de publicação do ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, a critério da autoridade instauradora, quando as circunstâncias o exigirem[6].

Deve-se notar que é possível que o servidor que está sendo investigado seja afastado temporariamente como está elencado no art.147 da referida lei, isso é cabível para evitar que o servidor interfira no andamento do processo, prejudicando o seu andamento. Entretanto essa não é uma medida de coação e sim uma medida preventiva da administração. Assim como o processo administrativo tem 60 dias para ser concluído, o afastamento temporário do servidor também terá o mesmo prazo de conclusão do processo administrativo, bem como os requisitos de prorrogação[7].

Feito isso, passa-se para a fase de inquérito administrativo onde se terá três fases a instrução, a defesa e o relatório. Na instrução a comissão procurará levantar o maior número possível de fatos, evidências, depoimentos, enfim, todos os elementos capazes de confirmar ou refutar as acusações que pesam sobre o servidor[8].

Já na defesa, como o próprio nome diz o réu apresentará a sua defesa e assim como no processo civil, caso a mesma não seja apresentada se estará evidenciando um caso de revelia, que não possuirá o efeito de confissão de coisa alguma. Apreciada a defesa pela comissão, passa-se à última fase do inquérito administrativo que é a elaboração do relatório[9].

Onde estará presente um relatório com o resumo das peças principais dos autos e deverão ser mencionadas as provas em que a comissão se baseou para formar a sua convicção. Terminada a fase de elaboração do relatório, encerram-se os trabalhos da comissão. O processo disciplinar, com o relatório conclusivo, será então remetido à autoridade que determinou a sua instauração, para julgamento[10].

Posto isso, mister se faz esclarecer que é possível que haja uma revisão do processo administrativo, no entanto, a mesma só poderá ser observada depois que o processo estiver concluído, pois, a revisão é um processo autônomo, que corre em apenso ao processo originário. A mesma só será cabível se houver fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada[11].

Cabe agora analisarmos a possibilidade de haver uma responsabilização do servidor público por ato particular. Como é cediço, a Lei 8112/90 deixa bem claro que o processo administrativo vai apurar as responsabilidade do servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido. Essa análise será feita no tópico seguinte.

 

4 (Im)POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO SERVIDOR PÚBLICO POR ATOS PRATICADOS NA VIDA PRIVADA

Buscando preservar a imagem, decoro e a credibilidade,  o regime disciplinar do funcionalismo não se preocupa somente com os atos estritamente desempenhados no exercício funcional, mas também que devem merecer respeito perante a sociedade.

José Armando da Costa acentua que em virtude do fato de a moralidade e seriedade da Administração Pública eventualmente caírem no descrédito, o procedimento irregular do servidor em sua vida privada pode se enquadrar no âmbito da responsabilidade disciplinar, diante dos administrados, no caso da presença de elemento inescrupuloso e desonesto nos quadros funcionais do Estado[12].

Não se pode admitir, por exemplo, que um policial civil seja conhecido explorador de prostituição infantil, agiota, estelionatário condenado, integrante de quadrilhas, autor de extorsão ou tráfico de drogas, ainda que consume essas condutas reprovadas e criminosas fora do desempenho do cargo, pois, mesmo assim, se evidencia uma incompatibilidade moral da parte da pessoa física para figurar como um componente da Administração Pública e das carreiras efetivas do funcionalismo estatal, sobretudo como combatente da criminalidade, como se supõe ser um policial.

A Lei 8.112/90, nesse particular, destaca que o processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido (art. 148). (grifo nosso).

Assim, José Armando da Costa inclui entre as transgressões disciplinares o comportamento desonroso praticado pelo servidor público inescrupuloso e ímprobo em sua vida privada, porque, se esta abalar o crédito, a seriedade e a moralidade com que devem ser considerados os agentes da Administração Pública, desacreditando, por via indireta, o prestígio estatal perante a sociedade, não mais convirá a permanência do funcionário como integrante da estrutura administrativa do Estado[13].

Di Pietro doutrina: “A vida privada do funcionário, na medida em que afete o serviço, pode interessar à Administração, levando-a a punir disciplinarmente a má conduta fora do cargo”, mas enfatiza que, para configurar ilícito disciplinar, o mau comportamento na privacidade do servidor tem que, direta ou indiretamente, surtir reflexos na vida funcional[14].

Em posicionamento contrário há doutrinadores que afirmam que a vida íntima do servidor, seus momentos de privacidade ou de contato social, ainda que não lhe confiram o título de cidadão-modelo, não podem ser devassados para fins de punição disciplinar. Fábio Medina Osório parece encampar essa linha de entendimento:

O problema da falta de probidade administrativa tem que ser visto no universo da ética pública, no contexto de normas jurídicas especificamente protetoras das funções públicas, dos valores imanentes às Administrações Públicas e aos serviços públicos. […] Caberá ao direito disciplinar tutelar condutas incompatíveis com as funções. A improbidade administrativa não se configura, pois, pelo chamado comportamento incompatível com a função pública, se tal conduta estiver dissociada totalmente das atribuições do agente público, visto que não tratamos de uma honra privada e de seus reflexos nos setor público, mas sim da honra diretamente vinculada às funções públicas[15]. 

Julgou o Superior Tribunal de Justiça no mesmo diapasão:

 In casu, em nenhum momento restou efetivamente evidenciado que o Recorrente estivesse no exercício de seu mister (“em serviço”). Isso porque, uma vez que os fatos se deram em local diverso do ambiente do trabalho, ainda que próximo, como consta do Relatório Final, somente seria cabível a imputação acaso ficasse demonstrado que o Recorrente estava, ao menos, no cumprimento das atribuições do cargo no momento do ocorrido, o que não ocorrera na espécie. O fato de cuidar-se a vítima de funcionário público, colega de serviço do Recorrente, e de existir uma animosidade entre eles em razão do serviço, segundo consta dos autos, não se mostra suficiente para tipificar o ilícito administrativo. Recurso conhecido e parcialmente provido para anular a pena demissória aplicada ao Recorrente.[16]

Não obstante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu, em sentido diverso, que “o comportamento irregular por parte de policial, ainda que verificada esta situação ao agir como cidadão comum, não obsta a abertura de sindicância, porque tal não o eximiria de zelar pela imagem de sua instituição, no seu habitual proceder.[17]

O que deve ser cotejado, portanto, é a relação direta de prejuízo entre a conduta privada, se manifestamente incompatível com os valores esperados dos titulares de cargos na Administração Pública, e sua imediata vinculação com as atribuições funcionais do servidor.

Tanto que em certos estatutos disciplinares, como dos policiais civis, de regra, a prática de crimes comuns, contra o patrimônio, os costumes, a fé pública, constitui falta disciplinar, passível de demissão.

 

5 CONCLUSÃO

Para os que consideram possível a responsabilização do servidor público por ato da vida privada, defendem que é a ofensa à moralidade profissional, a indignidade estritamente associada às atribuições funcionais, que deve ser considerada para ensejar juízo reprobatório implicante de responsabilidade administrativa, não a violação de comportamento referente à qualidade, p. ex., de pai, tutor, marido, condômino, no que tange à vida íntima, privada, às relações sociais reservadas do funcionário. A responsabilidade disciplinar deve ser associada à incontinência de conduta funcional ou ao ato da vida privada, cujo cometimento torne incompatível o desempenho das atribuições administrativas pelo servidor desregrado.

Já para os opositores, não há ensejo, porém, para elastecer o alcance das punições disciplinares para fatos da vida privada ou da intimidade, que devem ter seu âmbito próprio de repressão, com conseqüências cíveis, comerciais, familiares, sociais e até desaprovação moral contra o servidor, todavia sem repercussão na via administrativa.

Muita ponderação e cautela devem presidir a apreciação concernente à repercussão administrativa da conduta da vida privada do servidor público. Só em casos inquestionáveis de prejuízo para a atividade funcional ou o prestígio direto do funcionário em face das atribuições específicas de seu cargo, prejudicadas pela ação consumada no âmbito particular, a responsabilização poderá ser aplicada.

REFERÊNCIA

 

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 19 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

 

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24 ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011.

 

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. O problema da responsabilidade administrativa do servidor público por atos praticados na vida privada: limites. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1683, 9 fev. 2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10932>. Acesso em: 24 maio 2011.

COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 201.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª. ed., São Paulo: Jurídico Atlas, 2004, p. 526-527.

OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 285, 87

 

 

Camilla Barroso Graça e Claudean Serra Reis[18]

 



[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24 ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011, p.541.

[2] Ibidem, p.542.

[3] Ibidem, p.699.

[4] Id.

[5] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 19 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p.405.

[6] Ibidem, p.406.

[7] Id.

[8] Ibidem, p. 407.

[9] Id.

[10] Ibidem, p.413-414.

[11] Id.

[12] COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 201

[13] Ibidem, p. 204

[14] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª. ed., São Paulo: Jurídico Atlas, 2004, p. 526-527.

[15] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 285, 87

[16] RMS 16264/GO, 2003/0060165-4, relatora a Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgamento de 21.03.2006, DJ de 02.05.2006, p. 339.

[17] APC 3325394/DF, registro do acórdão n. 78059, data de julgamento de 12.12.1994, 5ª Turma Cível, relator o Desembargador Romão C. Oliveira e relator designado o Desembargador Dácio Vieira, DJU de 23.08.1995, p. 11.702.

 

[18] Alunos do 7º período da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco- UNDB do curso de direito, trabalho apresentado para a disciplina de direito administrativo lecionado pelo professor Hugo Passos, para obtenção da 2º nota.

Como citar e referenciar este artigo:
GRAÇA, Camilla Barroso; REIS, Claudean Serra. (Im)possibilidade de responsabilização administrativa do servidor público por atos praticados na vida privada. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/impossibilidade-de-responsabilizacao-administrativa-do-servidor-publico-por-atos-praticados-na-vida-privada/ Acesso em: 18 abr. 2024