Direito Administrativo

Limitações convencionais e legislação de zoneamento, uso e ocupação do solo urbano

Limitações convencionais e legislação de zoneamento, uso e ocupação do solo urbano

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

O objetivo deste estudo é o de demonstrar o posicionamento equivocado da administração pública, bem como, da jurisprudência ao prestigiar as restrições convencionais impostas pelos loteadores, que vêm se transformando em planejadores e coordenadores do desenvolvimento urbano, usurpando a competência legislativa do Município, estabelecida pela Constituição Federal em caráter de exclusividade. Trata-se de esmiuçar a velha tese da prevalência das restrições convencionais, sempre que maiores do que aquelas estabelecidas em lei. Lamentavelmente, a Administração, por seus órgãos técnicos, sempre se orientou por essa tese equivocada: se a convenção estabelecer restrição menor do que a lei, prevalece esta última; se, ao contrário, estabelecer restrição maior esta se sobrepõe à lei.

    

Esse incoerente e absurdo posicionamento, que atenta contra o próprio conceito de interesse público, que leva o poder público a exercer seu poder de polícia, limitando ou disciplinando o direito de propriedade foi encampado pelo art. 1º da Lei nº 9.846, de 4 de janeiro de 1985, que conferiu nova redação ao art. 39 da Lei nº 8.001/73, alterado pelo art. 25 da Lei nº 9.413/81, nos seguintes termos:

 

“Art. 39 – As restrições convencionais de loteamentos aprovados pela Prefeitura, referentes a dimensionamento de lotes, recuos, taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, altura e numero de pavimentos das edificações, deverão ser atendidas quando:

a – as referidas restrições forem maiores do que as exigidas pela legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo;

b – as referidas restrições estejam estabelecidas em documento público e registrado no Cartório de Registro de Imóveis.

§ 1º As categorias de uso permitidas nos loteamentos referidos no caput deste artigo serão aquelas definidas para as diferentes zonas de uso pela legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo.

§ 2º As disposições desta artigo aplicam-se apenas as zonas de uso Z 1, Z 9, Z14, Z15, Z17, Z18 e aos corredores de uso especial Z8-CR1, Z8-CR5 e Z8-CR6.

§ 3º As alterações das restrições convencionais dos loteamentos dependerá de acordo entre o loteador e os proprietários dos lotes atingidos pela alteração, além da anuência expressa do Poder Público, através de parecer favorável da Comissão de Zoneamento, da Secretaria Municipal do Planejamento.”

 

    

Esse esdrúxulo dispositivo retro-transcrito não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 182 assim prescreve:

 

“Art. 182 – A política de desenvolvimento urbano, executado pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§ 1º – O Plano-Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano-Diretor.

§ 3º – As desapropriações………………..

§ 4º – É facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída no Plano-Diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subtilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de:

I – parcelamento ou edificação compulsórios;

II – imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana progressiva no tempo;

III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 (dez) anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”

 

    

Verifica-se dos textos acima transcritos que ao Município é cometida a missão de, em caráter privativo, ordenar as funções sociais da propriedade urbana, tendo o Plano-Diretor como instrumento de execução da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Verifica-se que, muito ao contrário do que diz a doutrina majoritária, ainda calcada nos textos da ordem constitucional antecedente, a função social da propriedade urbana é definida pelo Poder Público Municipal, com exclusividade, à medida em que esta só cumpre a função social quando atende as exigências expressas na lei do Plano-Diretor. E mais ainda, o § 4º faculta ao Poder Público Municipal exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subtilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena sucessivamente de: parcelamento ou edificação compulsórios; IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento através de títulos da dívida pública. Esclareça-se que a União somente poderá definir a função social da propriedade rural, conforme art. 186 da CF.

    

Resulta do exposto, que a matéria concernente ao uso e ocupação do solo insere-se no campo do direito urbanístico, cujas normas são de natureza impositiva, subordinando quaisquer normas de natureza particular, como aquelas resultantes de convenções em geral, aos ditames da lei de interesse público. E essa lei de interesse público, como prescreve a Constituição Federal, é de competência municipal.

    

Assim, não faz menor sentido manter-se as exigências convencionais, sempre que as mesmas sejam maiores do que as fixadas na Lei nº 7.805 e na Lei nº 8.001/73, como se o interesse público pudesse fundar-se na imposição de restrições sempre maiores: quanto mais restringe, mais atende ao interesse público. Trata-se de um raciocínio equivocado, que não encontra guarida no sistema constitucional vigente. No campo reservado ao exercício regular do poder de polícia a Constituição Federal alberga o princípio de que as restrições ao exercício do direito de propriedade, bem como, à liberdade individual sejam adequadas ao mínimo indispensável ao atendimento das necessidades públicas. Não permite a Carta Magna sacrifícios ao exercício do direito de propriedade, mediante adoção de restrições imaginadas, projetadas e convencionadas por particulares, como faculta o art. 39 da lei n. 8.001/73, que se caracteriza como verdadeira norma de lei em branco. Se a própria lei do Poder Público competente, regularmente votada e aprovada pelo Legislativo, deve estatuir, de forma expressa, as restrições urbanísticas, em obediência ao princípio da segurança que dá embasamento à garantia constitucional do cidadão, como é possível permitir a prevalência das restrições de natureza convencional sobre as restrições legais, sempre que aquelas forem maiores que estas últimas? Ora, se o interesse público exigisse uma restrição maior, a lei já o teria feito. Se não o fez é porque a maior restrição contraria o interesse público, considerados todos os aspectos. As convenções particulares hão de respeitar os limites da lei municipal e aquelas anteriores às leis municipais, deverão adequar-se as exigências da lei, resguardados os direitos adquiridos. Não há como o Poder Público Municipal tolerar convenções de particulares conflitantes com as normas legais, a pretexto de que aquelas convenções estabelecem restrições maiores dos que as legalmente previstas. Se a lei exigir, por exemplo, um recuo frontal mínimo de 5 metros é porque assim ditou o interesse público, não sendo, portanto, possível tolerar um disposição convencional que imponha uma restrição mais gravosa como, por exemplo, de 7, 15 ou 30 metros, sob pena de acarretar a subtilização do lote, que cabe ao Poder Público combater.

    

Norma como a do art. 39 sob exame atende exclusivamente ao interesse particular do loteador. Aliás essa disposição legal é fruto de lob das grandes companhias loteadoras, que têm interesse econômico-financeiro em limitar o potencial de utilização do imóvel com vistas à comercialização de lotes cada vez maiores. Trata-se, como se diz na gíria, de lei encomendada. Tivemos a oportunidade de examinar um caso em que o proprietário de um loteamento situado na cidade de Osasco exigia área mínima de 50.000m2, com frente mínima de 100m e com taxa de ocupação de 15%. Tais restrições haviam sido encampadas pelo poder político local, resultando na edição de lei nº 1.613/80. Na oportunidade demonstramos a aberração jurídica dessa lei dirigida que se distanciava da realidade sócio-econômica da região. Essa malfadada lei, que tantos transtornos causou aos cidadãos de Osasco, finalmente, por não atender ao interesse público, veio a ser modificada pela Lei de nº 2.070/88.

    

Se o Município fosse condicionar a expedição das licenças de edificação à observância das restrições convencionais, sempre que mais restritivas que aquelas resultantes da lei, o Poder Público Municipal acabaria por perder a sua atribuição precípua de ordenador das funções sociais da propriedade urbana, cometida pela Constituição de 1988. De fato, poderia surgir inúmeras “mini cidades” dentro da cidade de São Paulo, caracterizadas aquelas por edificações peculiares que atendem aos padrões de recuos, de dimensionamento, ocupação e aproveitamento do lote, segundo a vontade estabelecida pelo loteador, na defesa de seu interesse privado, que nem sempre é coincidente com o interesse público a ser tutelado, exclusivamente, pelo Poder Público Municipal, através de suas normas urbanísticas, derrogadoras das disposições particulares em contrário. Aliás, a idéia que inspirou o legislador de 1981 ao induzir o art. 39 em questão é equivocada e contraditória como dito de início.

    

De fato, ou prevalecem as normas de direito público sobre as normas convencionais, ou estas devem ser respeitadas pelo Poder Público. Se as primeiras devem prevalecer sobre as segundas, obviamente, devem prevalecer sempre, e não, apenas quando estabelecem restrições mais gravosas, pois esse grau de restrição deve ser dosado exclusivamente pelo Poder Público que conciliará o interesse da coletividade com o menor sacrifício a ser imposto ao proprietário. O Poder Público nada tem a ver com as normas convencionais, que se inserem no campo do direito privado, devendo as eventuais controvérsias serem discutidas e dirimidas em instância própria.

    

As normas internas do loteador é que têm que se adequar aos limites estabelecidos pela legislação municipal, nunca o contrário. Se o interesse público levou o legislador a fixar o limite máximo de restrições de uso e ocupação do solo, não cabe ao particular estabelecer limites ainda maiores. Da forma como vem sendo interpretado esse art. 39, e em combinação com seu § 3º, não há como deixar de reconhecer que estaria permitindo aos particulares estabelecer normas com força de lei, esquecendo-se que em termos de direito público, é inaceitável o provérbio pacta sunt servanda.

    

O estranho nisso tudo é que, em recente decisão, o Tribunal de Justiça em sede de Adin declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 11.773/95, alegando impossibilidade de modificações de índices e características de uso e ocupação do solo, reconhecendo não ser possível ao Poder Executivo editar norma de conduta individual em matéria de reserva legal. Essa lei permite a modificação de índices urbanísticos mediante a aprovação da chamada operação interligada, pela qual, o interessado deverá efetuar o pagamento de um determinado valor a título de contrapartida, valor esse a ser destinado ao Fundo Municipal de Habitação, para construção de Habitações de Interesse Social, com vistas ao atendimento de moradores de habitação subnormal. Ora, se não é possível ao Executivo modificar os índices urbanísticos ainda que obedecendo todos os requisitos objetivamente enumerados na lei, bem como, cumprindo à risca todos os procedimentos administrativos previstos na legislação, como é possível defender a constitucionalidade do art. 39 da Lei nº 8.001/73, que permite restrições imaginadas, projetadas e convencionadas por particulares? Como é possível tolerar que o particular possa impor índices urbanísticos diferentes daqueles definidos em lei, sem o prévio estudo das características de cada zona urbana? Somente o Poder Público tem a visão do global em termos de planejamento e ordenação das funções sociais da cidade, o que afasta a possibilidade de cada loteador estabelecer seus próprios índices urbanísticos. Essa indigitada norma, contraditória e inconscientemente prestigiada pela jurisprudência, representa uma verdadeira norma legal em branco. Qualquer restrição imposta pelo loteador, ainda que absurda, bastará que seja mais severa que a imposta pela lei do zoneamento ou de uso e ocupação do solo para obter da administração pública o seu “cumpra-se”. Essa norma permite que o particular substitua o Poder Público municipal no papel de planejador e ordenador do desenvolvimento urbano, que a Carta Magna conferiu com exclusividade ao Município. Difícil imaginar que semelhante norma não tenha, ainda, sido extirpada do mundo jurídico.

 

 

SP, 17.01.02.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Limitações convencionais e legislação de zoneamento, uso e ocupação do solo urbano. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/limitacoes-convencionais-e-legislacao-de-zoneamento-uso-e-ocupacao-do-solo-urbano/ Acesso em: 29 mar. 2024