Direito Administrativo

A legalidade da cobrança de remuneração, pelo município, pela utilização do subsolo

A legalidade da cobrança de remuneração, pelo município, pela utilização do subsolo

 

 

Kiyoshi Harada*

Alberto J. Marques**

 

 

1. Tem sido discutido, inclusive na via judicial, a legalidade e a constitucionalidade ou não, do fato de alguns municípios pretenderem cobrar uma remuneração pela utilização do seu subsolo, por empresas privadas ou por concessionárias de serviços públicos; em alguns casos pretende-se cobrar também pela instalação de postes na base física do solo e subsolo, nas vias públicas. Temos visto as mais absurdas afirmações e decisões em liminares, dando pela eventual inconstitucionalidade da “taxa” de cobrança; tratar-se-ia de propriedade da União (o subsolo); faltaria competência ao Município para efetuar tal cobrança; competência da União, por lei federal, para efetivação da referida cobrança.

    

Mas o principal problema que tem sido levado aos tribunais é que a Constituição Federal impede a incidência de tributos sobre serviços públicos, conforme disposto no seu art. 155, § 3º (“À exceção dos impostos de que tratam o inc. II, do “caput” deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País”.

    

Ora, a cobrança pela utilização de bens públicos, de há muito, se constitui em preço público e não em taxa (tributo). Daí a absoluta improcedência, no caso, da invocação dessa disposição constitucional. Aliás, temos duas situações distintas, quanto à remuneração do subsolo ao Município: a primeira, quando uma entidade não concessionária de serviços públicos pretenda se utilizar do subsolo, por exemplo, passando fibras óticas por ele; a segunda, quando empresa concessionária de serviço público (energia elétrica, serviços de telecomunicações, água e esgoto, gás, etc.) pretender se utilizar do subsolo.

    

Na primeira hipótese, teremos a cobrança de um preço público; na segunda hipótese, teremos a cobrança de uma indenização, pela servidão de passagem que a concessionária tem o direito (desde que delegado esse direito pelo poder concedente) de impor servidão administrativa ao Município, para as passagens dos fios pertinentes.

    

Vejamos, detalhadamente, como e porque, o Município pode obter uma remuneração pela utilização, por terceiros (sejam entidades delegatárias de serviços públicos ou não) do seu subsolo.

 

    

2. A remuneração por particulares não concessionárias (fibras óticas).

   

A pretensão do Município de cobrar um preço público, por decreto (não se trata do tributo taxa), é legal, constitucional e absolutamente procedente.

    

No caso, o Município, ou por concessão administrativa de uso, ou por permissão de uso, outorgará ao particular o direito de se utilizar dos seus bens públicos, mediante tal remuneração.

    

Como se sabe, os bens públicos, comuns do povo e de uso especial, são de domínio, quando locais, do Município (a Lei n.º 6.766/79, no seu art. 22 diz que as ruas, praças, áreas livres e os equipamentos comunitários passam para o domínio do Município, pelo registro do loteamento).

    

Ora, se alguém pretende se utilizar do subsolo, acima do solo que pertence ao Município, nada mais curial que obtenha a concessão de uso ou a permissão de uso, desse Município, pois o subsolo também pertence a este (o art. 526 do C.C. dispõe que: “A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício…”).

   

Portanto, se o subsolo pertence ao Município, para que alguém possa dele usufruir, terá que obter concessão ou permissão daquele, para esse uso, devendo pagar um preço público, para tal. Advirta-se que a assertiva de que o subsolo pertenceria à União, “data-vênia” dos que assim dizem, é equivocada. O que a Constituição afirma ser de propriedade da União, não é o subsolo como um todo, mas apenas as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica (constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento -art. 176 da C.F.).

    

Outrossim, não se trata de taxa, mas sim de preço público, pois “esse uso pode ser consentido gratuita ou remuneradamente, por tempo certo ou indeterminado, consoante o ato ou contrato administrativo que o autorizar, permitir ou conceder” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 15ª edição, p. 428).

    

O mesmo autor (ob. cit. P. 201) diz que “os preços semiprivados surgem de atos negociais da Administração com o particular para aquisição ou utilização de bens públicos, ou para fruição especial de certas utilidades administrativas…sendo exemplos os que se pagam ao Poder Público pela compra de seus bens, alienados mediante licitação; a remuneração pelo uso especial de certos logradouros públicos”.

    

O certo é que, como fica patente, a cobrança que o Município faz do particular pela utilização que a esta faculta, de um bem público, deve ser considerada como um preço (não taxa – tributo), que, para nós, é público, sem distinção, sendo, nesse sentido, “a importância paga em razão de um contrato de prestação de serviço, ou pela aquisição, uso e gozo, também contratual, de um bem” (cf. Joaquim Castro Aguiar, Regime Jurídico das Taxas, IBAM, 1982, p. 33).

    

Como frisou Carlos de Carvalho (“Nova Consolidação das Leis Civis”, cit., por Brandão Cavalcanti, Tratado, 4ª ed., 1956, Vol. III, p. 374-5), “o uso comum pode ser gratuito ou oneroso. As leis administrativas determinam as modalidades desse uso.”, ao mesmo tempo em que o Código Civil, com precisão, determina: “o uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme as leis da União, dos Estados, ou dos Municípios, a cuja Administração pertencerem” (cf. Brandão Cavalcanti, ob. cit. p. 375). Portanto, o uso do subsolo por entidades não concessionárias de serviços públicos (ou mesmo sendo, em certos casos), implica na possibilidade legal da cobrança de, um preço público, por essa utilização, pelo Município. Inclui-se aí também cobrança pela instalação de postes, eis que aqui também há a utilização do solo e do subsolo do Município.

 

    

3. A remuneração por concessionárias de serviços públicos.

    

A outra forma de utilização do subsolo é pelas concessionárias de serviços públicos (de eletricidade, de telecomunicações, etc.). Neste caso, evidentemente, em se tratando de serviços públicos, se a concessionária recebeu delegação do poder concedente para efetivar desapropriações e servidões administrativas, há que se entender que não há falar em permissão ou concessão de uso, mas sim de um direito da concessionária de ter a passagem dos seus fios e outros equipamentos necessários, pelo subsolo. É o que prevê o Código de Águas, a Lei federal que instituiu a ANEEL e, no caso, o Decreto regulamentar n.º 2.335/97, no seu art. 4º dá competência à ANEEL para: XXXV – Declarar a utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa dos bens necessários à execução de serviços ou instalação de energia elétrica, nos termos da legislação específica. Já o Código de Águas previu no art. 29 que o poder concedente declararia a necessidade ou utilidade pública, para fins de desapropriação ou de servidão administrativa de bens necessários às obras ou serviços, podendo outorgar poderes à concessionária, caso em que será desta a responsabilidade pelas indenizações cabíveis.”Entretanto, contraditoriamente (e inconstitucionalmente), o Decreto 84.398, de 14.01.1980, no seu artigo 2º diz que as “autorizações” serão por prazo indeterminado e sem ônus para as concessionárias de serviços públicos de energia elétrica”. Adilson Abreu Dallari também diz ser inconstitucional esse dispositivo: “Salta aos olhos que não cabe à União dispor sobre o uso de bens públicos municipais, e muito menos por meio de simples decreto. Nem se diga, no caso, que a mencionada norma estaria apenas disciplinando um serviço público federal. Se assim for entendido, será forçoso concluir que a gratuidade aí afirmada poderia estender-se também sobre bens privados, pois o serviço continuaria a ser federal.

    

Para sustentar a constitucionalidade desse dispositivo, argumentou-se com o despropositado entendimento (já afastado pela melhor doutrina e jurisprudência) de que os bens públicos pertencem à coletividade, aos cidadãos, e não a esta ou aquela específica pessoa jurídica de direito público. Obviamente, tal entendimento não tem como sustentar-se à luz dos princípios da autonomia municipal e da legalidade. Com efeito, a autonomia municipal compreende a titularidade de todos os bens municipais e especialmente a plena liberdade, sem qualquer turbação não expressamente fundada na Constituição Federal, de sua administração. Além disso, decreto não é lei; é mero ato administrativo, de conteúdo normativo, dispondo sobre meios e modos de execução de alguma específica lei (que no caso não existe) e dirigido aos subordinados de seu signatário (coisa que o Município não é, com relação ao Presidente da República).

    

É evidente que o Município não pode proibir, impedir ou prejudicar o funcionamento de um serviço público federal. Mas é também verdade que a execução de serviço público federal não pode servir de pretexto, nem tem força suficiente, para destroçar o princípio constitucional da autonomia municipal e, por extensão, o próprio princípio federativo, que integra o chamado cerne fixo da Constituição, não podendo ser abolido nem mesmo por Emenda Constitucional (confira-se, CF art. 60, § 4º, I).

    

O Município pode ser até mesmo compelido judicialmente a ceder o domínio ou o uso de seus bens para viabilizar o funcionamento de um serviço público federal, por meio de desapropriação ou constituição de servidão administrativa, mas não gratuitamente”. (in “Uso oneroso de bens públicos por concessionárias de serviços públicos”, Temas de Direito Municipal – ADM, Serra Negra, Maio de 2001, pp. 9/10).

   

Aliás, a Lei n.º 9.472, de 16.07.1997, que dispõe sobre a “Organização dos Serviços de Telecomunicações, a criação do Órgão Regulador”, no Parágrafo único do art. 73 reza expressamente: “Caberá ao órgão regulador do cessionário dos meios a serem utilizados definir as condições para adequado atendimento do disposto no art. 74. A concessão, permissão ou autorização de serviço de telecomunicações não isenta a prestadora do atendimento às normas de engenharia e às leis municipais, estaduais ou do Distrito Federal, relativas à construção civil, e às instalações de cabos e equipamentos em logradouros públicos”.

    

E o art. 100 da mesma Lei dispõe que aos concessionários cabem os ônus. Comentando os arts. 73 e 74 da Lei 9.472/97, Lúcia Valle Figueiredo (Telecomunicações e Infra-Estrutura: arts. 73 e 74 da Lei n.º 9.472/97, in BDA n.º 6 – NDJ, p. ) afirma: “Quando se tratar de implantação de infra-estrutra no subsolo, parece-nos hipótese típica de servidão de passagem. A servidão, tanto quanto a desapropriação, poderá ser feita por acordo entre as pessoas jurídicas, e homologado judicialmente. Se não houver acordo deverá ser feito o processo de constituição de servidão, com a declaração de utilidade pública, a avaliação dos ônus à municipalidade, e pedido de imissão provisória, feito o depósito inicial, e fixado posteriormente o que quantum indenizatório” (pp. 424/5).

    

E arremata:

    

“E, de qualquer modo, seja o concessionário que arque com os ônus, seja o concedente, sempre haverá, do outro lado, a União, o Estado federado ou o Município, detentores de direitos indisponíveis” (p. 425).

    

Portanto, é perfeitamente natural, jurídica e possível a cobrança de uma indenização, pelo Município, pois se trata, no caso das concessionárias de telecomunicações (ou de eletricidade e outros serviços públicos), de uma servidão administrativa, que, como é de sabença elementar, implica no pagamento, pela sua imposição, de uma indenização ao proprietário do imóvel.

    

Essa indenização não tem um valor fixo estipulado em lei, mas tem sido objeto de construção jurisprudencial., que oscila no mínimo, de um terço do valor do bem e, no máximo, em 60% do valor do bem.

    

Em se tratando de atividade econômico-lucrativa preferível seria o arrendamento, mais condizente com o atual estágio das relações econômicas entre as Instituições.

    

Destarte, conclui-se que, no caso das concessionárias de serviços públicos, desde que tenham recebido delegação do ente concedente para efetuar servidões administrativas no subsolo, deverão pagar indenizações ao Município.

    

Se não tiverem tal delegação, deverão obter concessão de uso ou permissão de uso, como se particular fosse, do Município, para se utilizar do subsolo e pagar o preço público fixado para tal. Deve-se afirmar, por derradeiro, que a cobrança pelo uso dos bens municipais é inquestionável, vez que se constitui em receita prevista no art. 2º, IV da Lei Complementar n.º 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

 

SP, 22.06.01.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

**Procurador Federal aposentado, Coordenador Jurídico da Comissão Especial – Comfibra, que instituiu no DNER a cobrança pelo uso, pelas prestadoras de serviços públicos, pelo uso das faixas de domínio das rodovias federais. Consultor Jurídico da FUBRAS.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi; MARQUES, Alberto J.. A legalidade da cobrança de remuneração, pelo município, pela utilização do subsolo. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/a-legalidade-da-cobranca-de-remuneracao-pelo-municipio-pela-utilizacao-do-subsolo/ Acesso em: 25 abr. 2024