Direito Penal

Garantismo Penal: noções e relevância social na aplicação na justiça

Garantismo Penal: noções e relevância social na aplicação na justiça

 

 

Denise Carmen Ribeiro Conceição*

 

 

1) Introdução

 

Este trabalho visa à realização de uma abordagem teórica acerca do Garantismo Penal, a mais recente Escola Penal, criada por Luigi Ferrajoli, frente à necessidade de adequar o Direito Penal aos princípios constitucionais, assegurando direitos e garantias tanto ao agente que se encontrar processado ou condenado quanto à sociedade como um todo, buscando diminuir o  punitivo poder do Estado sobre o cidadão e transformá-lo num Estado Constitucional de Direito.

 

Muito tem-se falado de uma atual crise no sistema penal, isto porque o Direito Penal passou a ser simbólico, ou seja, apresenta muitos símbolos de rigor excessivo,  o que mostra o forte interesse do Governo em manipular opiniões mais do que fazer Direito. Esse excesso de rigor é claramente demonstrado pelo exacerbado volume do Código Penal Brasileiro, tudo é caracterizado como crime, a conseqüência é a banalização da legislação penal, porquanto a mesma termina não sendo aplicada efetivamente.

 

Como ensinava BECCARIA (1738-94), o que faz a diminuição da criminalidade é a certeza da punição e não o excesso de rigor das penas, tampouco o Estado máximo. O Direito Penal deve ser usado como ultima ratio.

 

 

2) Uma breve análise histórica

 

Nos primórdios da história do Direito, atribuía-se todos os acontecimentos bons ou maus às divindades. Para controlar a ira dos deuses, criaram-se proibições (regras de conduta) de cunho religioso, social e político, que se fossem desobedecidas aplicavam-se castigos. Desta forma, surgiram os crimes e as penas.

 

Por volta de 2.000 a.C., aplicava-se a Pena de Talião, criada devido ao sentimento da vingança, conhecida pela frase “olho por olho, dente por dente”. Após, foi instituído o Código de Hamurabi, o qual trouxe para o Direito Penal contribuições que até hoje vigoram, como a noção de roubo e receptação. Não se pode olvidar da Lei das Doze Tábuas, onde continha os principais tipos penais.

 

Ao longo dos séculos, a tortura nas penas foi se tornando apreciada pelos legisladores e pela sociedade da época (que ainda hoje não é muito diferente, usam o Direito do Inimigo: enquanto for com o outro, não tem problema). No século XVIII, as penas-suplício eram o cúmulo da barbárie humana, conforme denuncia FOUCAULT, em Vigiar e Punir (1975:31): “Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de um graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação – que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício – até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza mito tempo; a morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento (…)”.

 

No século XX, foi banida a pena desumana, no Brasil, mas, atualmente, no século XXI, é fato que as cadeias e presídios abrigam internos em mais da metade de suas capacidades, fazendo-os revisar as poucas horas de sono ou dormir em pé amarrados na grade porque não tem espaço físico no chão para descansarem seus corpos.

 

Ante o exposto, dispensa-se maiores explicações sobre a relevância e necessidade do Garantismo Penal.

 

 

3) Do Garantismo Penal

 

O Garantismo, como se pode pensar, não vai de encontro ao Positivismo Jurídico, o que não pode ser aceitável é o extremado jus puniendi (direito de punir do Estado). É evidente a importância da criação de normas que regulamentem o convívio social, senão seria impossível manter a ordem e a coesão. Para tal, não é preciso que o Estado se mostre o poderoso, o soberano, impondo-se sobre os súditos a todo momento e por tudo.

 

No Brasil, foi criado um sistema jurídico que prega a igualdade entre todos, só que essa igualdade é meramente formal (perante a lei). Por conseguinte, o objetivo foi criar uma imagem de Estado democrático, protetor dos direitos, que pune no intuito de manter a ordem pública e aplica penas para ressocializar o infrator.

 

A realidade é bem diferente. Dificilmente os condenados conseguem cumprir a pena até o final e quando sobrevivem, geralmente, ou saem mais revoltados ou, arrependidos, saem com esperançosos de recomeçar a vida. Esse recomeçar é onde está o problema, a sociedade não aceita um ex-detento e, muitas vezes, são abandonados pela própria família. Sem emprego, sem como se sustentarem, não têm alternativas, são forçados a voltar para o crime, dando início a um ciclo, cujo fim é a morte. Portanto, pouca coisa mudou.

 

O problema da superlotação nas prisões deve-se, em grande parte, ao excesso de tipos penais, tudo é crime. Isto porque é mais fácil para o Estado, em termos de resposta à sociedade, mandar o indivíduo infrator à prisão do que tentar restituir o Direito, ou seja, muitas infrações poderiam ser resolvidas na esfera cível. Visando não abolir o sistema de penas, mas torná-las mais eficientes, no sentido em que respeitem os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Proporcionalidade, o Garantismo Penal propõe uma reanálise na elaboração e aplicação das leis à luz dos princípios fundamentais constitucionais e universais.

 

O Garantismo Penal traz questões a serem indagadas como “porque, quando e como punir”, “porque, quando e como proibir” e “porque, quando e como julgar”, assim como reflexões acerca do “Direito e moral” e “Justiça e validade”, em outras palavras, o direito positivo como fato (enquanto é) e o direito natural ou ideal como valor (enquanto deve ser). A preocupação com a forma, com a imagem do parecer ser justo, visivelmente percebida nos atos normativos de produção, cega os legisladores e operadores do Direito acerca da necessidade de voltar-se ao conteúdo das normas produzidas, transformando-as vigentes, porém ineficazes. A ineficácia gera invalidade. Luigi FERRAJOLI (2000:328), em Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, explica, com propriedade, o processo de positivação do direito natural, no qual consiste em recepcionar formalmente os princípios iluministas nas modernas Constituições na forma de “princípios fundamentais”, nas expressões “direitos sociais”, “direitos personalíssimos” ou “indisponíveis”.

 

O problema está justamente na separação do positivismo do jusnaturalismo, é como se forma e matéria não pudesse andar juntas, como se a institucionalização das normas positivas não tivessem nada a ver com a materialização do direito natural, criando a dicotomia direito e justiça. Essa separação reflete claramente na juridicionalização, pois se vê constantemente controle de constitucionalidade a respeito da inconsonância material ou substancial de atos normativos com os princípios constitucionais e, em sua minoria, contra vícios meramente formais.

 

Ainda sobre a divergência entre direito e justiça, observa-se os ensinamentos de FERRAJOLI sobre o grau de justiça: “Podemos chamar de justiça interna (ou legal) à correspondência entre vigência e validade no seio de cada ordenamento: das leis em relação à Constituição e das sentenças em relação às leis; e podemos chamar de justiça externa à correspondência entre validade e justiça, quer dizer, à adesão do ordenamento em seu conjunto a valores políticos externos. Devido ao caráter estrutural de ambas as divergências, caberia falar, obviamente, apenas de graus de justiça tanto externa quanto interna. O grau de justiça externa se mede pela quantidade e qualidade dos princípios de justiça incorporados limitativamente nos níveis normativos mais altos do ordenamento; o grau de justiça interna depende da quantidade e qualidade das garantias das quais esteja dotado o ordenamento, ou seja, das técnicas institucionais capazes de assegurar a máxima correspondência entre normatividade e efetividade dos princípios incorporados.” (p. 338) (grifos originais)

 

 

4) Conclusão

 

Várias são as soluções apontadas pelo Garantismo Penal que seriam uma verdadeira reforma no sistema penal e criminológico mundial, mas seriam tema para um livro, não caberia, aqui, citar, tampouco explicar todas. Foi escolhida, portanto, uma delas devido  à questão bastante cotejada neste artigo: a aplicação das penas.

 

Assim como na maioria dos códigos penais, as espécies de penas aceitas pelo Código Penal Brasileiro são as privativas de liberdade, as restritivas de direitos e as de multa.

 

Toda espécie de pena que tenha caráter pecuniário, além de injusta, não é válida, porque o objetivo da cominação de penas é atingir a pessoa do infrator, o que nem sempre acontece, pois, muitas vezes, quem efetua o pagamento é a família do acusado, ou a quantia não tem relevância para este e termina-se por não se alcançar o fim desejado de punir.

 

A pena privativa de liberdade dispensa maiores elucidações, ante todo o exposto, porque não é bem aceita pelo Garantismo Penal, a menos que fosse reformulada quanto ao tempo máximo de permanência de reclusão, o qual FERRAJOLI defende ser de dez anos (p. 381), mais do que isso seria humanamente impossível a recuperação do indivíduo.

 

Já a pena de restrição de direitos, com algumas alterações e adaptações, segundo uma escala proporcional e ponderação eqüitativa e, logicamente, previstas em lei, encaixa-se no ideal almejado pelo Garantismo Penal. Afinal, a liberdade – como a vida – é um direito personalíssimo, inalienável e indisponível, e, por conseguinte, sua privação total deveria ser proibida. Os demais direitos, por serem disponíveis, por outro lado, permitem formas bem mais variadas e toleráveis de privação e restrição (FERRAJOLI apud BECCARIA, p. 386).

 

 

Referências:

 

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2003.

 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 34. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

 

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

 

GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008.

 

NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

 

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006.

 

TOSCHI, Aline Seabra. Dignidade da pessoa humana e garantismo penal. Disponível em <//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp.?id=3967> Acesso em: 05 maio 2008.

 

 

* Servidora Pública e Estudante de Direito da UCSal – Universidade Católica do Salvador

 

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Como citar e referenciar este artigo:
CONCEIÇÃO, Denise Carmen Ribeiro. Garantismo Penal: noções e relevância social na aplicação na justiça. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/garantismo-penal-nocoes-e-relevancia-social-na-aplicacao-na-justica/ Acesso em: 15 mai. 2024